quinta-feira, 30 de maio de 2013

DICIONÁRIO POÉTICO





GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
 
Em cofre não se guarda coisa alguma.
 
Em cofre perde-se a coisa à vista.
 
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
 
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.
 
Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro
 
Do que de um pássaro sem voos.
 
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
 
Para guardá-lo:
 
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
 
Guarde o que quer que guarda um poema:
 
Por isso o lance do poema:
 
Por guardar-se o que se quer guardar.

                                                                        Antonio Cícero

     O poema parte de uma ideia de definição, que se inicia por uma negativa para depois afirmar e desdobrar esta definição. Aqui temos a diferença entre o uso da palavra em estado de dicionário e o uso poético, ou entre objetividade e subjetividade. A definição propõe a inversão: guardar não é esconder, mas publicar, declarar, declamar...
     Na imagem-exemplo, temos “Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro Do que de um pássaro sem voos”. Ou seja, guarda-se, ao contrário do esperado, o que nos foge como um voo, o que é passageiro como o voo, e não o pássaro que se pode pôr em uma gaiola. O guardar-se aqui se dá na memória, na afetividade, não em cofres ou prisões 


                                                        Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 28 de maio de 2013

MONTAGEM POÉTICA

                       Vocação

O menino pegou uma mudinha de planta
no quintal da casa da avó.
Aprendeu na escola
que as árvores estão acabando
nas florestas.

Tomou uma decisão:
-Vou plantar árvores!
Vou ajudar as florestas!

A primeira foi uma mudinha
da casa da avó.
Num vaso de plástico,
cuidou da plantinha.

Por um bom tempo,
não faltou água,
sol e ventinho
de apartamento.

Um dia, a plantinha morreu,
seca, sem água.

O menino tinha crescido,
estava ocupado
com o vestibular,
seria futuro engenheiro florestal.

                                                                  Angela Jucá

           
 O poema é um exemplo do uso da linguagem denotativa  na literatura. Ou seja, todas as palavras mantêm o seu sentido primeiro, não havendo uma metáfora sequer.
 Narrativo, ele estabelece marcações nítidas de espaço (na casa da avó, na escola, nas florestas) e de tempo (menino e crescido) e, como os textos curtos em prosa, apresenta uma surpresa, um final irônico.
     Esta ironia é o fundamento do poema, pois a plantinha morre por falta de cuidado da parte de um futuro engenheiro florestal. Do ponto de vista linguístico, a ausência de conectivos entre as quinta e sexta estrofes reforça o efeito da ironia.
         A poeta Angela Jucá optou por mostrar quadros, como em uma montagem cinematográfica, sem estabelecer nexos causais sintáticos, deixando que o leitor fizesse as correlações. Desta forma, o sentido não cabe em versos isolados, mas nasce das relações entre eles. Só a revelação final de que o vestibular é para engenharia florestal (justificando o título) é que esclarece a sua intenção crítica.


                                         Marcus Vinicius Quiroga   

domingo, 26 de maio de 2013

POEMA DE CABEÇA ERGUIDA








ERGUER A CABEÇA ACIMA DO REBANHO

Erguer a cabeça acima do rebanho
é um risco
que alguns insolentes correm.

Mais fácil e costumeiro
seria olhar para as gramíneas
como a habitudinária manada.

Mas alguns erguem a cabeça
olham em torno
e percebem de onde vem o lobo.

O rebanho depende de um olhar.


            Affonso Romano de Sant’Anna, leitor de Nietsche,  é poeta que não tem o instinto de rebanho e ,talvez por isto, foi capaz de nos oferecer este poema  que, didaticamente, deveria ser lido em salas de aula, reuniões de empresas, assembleias de toda sorte, câmaras e senados.  Ou seja, é um texto recomendável para todos os rebanhos, pois uma parada para reflexão de vez em quando não faz mal.
            As duas primeiras estrofes mantêm uma relação antitética: “erguer a cabeça” x “olhar para as gramíneas”. Estas são as duas opções de conduta, sendo mai frequente a que se caracteriza pela acomodação, como vemos nos adjetivos costumeiro e habitudinária.  Antitético também é o significado entre rebanho e lobo. Neste (e na sua procedência) a ameaça, talvez fatal.      
            O poema de Affonso não é sobre rebanho e lobos, mas sobre homens. Daí a atenção que devemos prestar a linguagem, que, simbólica, merece uma leitura não literal. Talvez como a de uma parábola.
            Do olhar do leitor também depende o texto, ainda que ele, mesmo enigmático, não tenha a intenção de devorá-lo.  



              Marcus Vinicius Quiroga