segunda-feira, 30 de maio de 2011

O POEMA É POR INTEIRO

O Poema

Ou se vive por inteiro
ou pela metade a gente
escreve a vida
que não viveu.

E o papel em branco então serve
como serve ao prisioneiro
a parede branca do cárcere.

O que não foi é o ser que é
no poema, esse ato mágico
de uma chama que não se vê
tanto mais quanto ela queima
no ar de uma cela vazia
o homem que é posto em pé
sobre os mortos do seu dia.

Moacyr Félix


O poeta político Moacyr Félix aqui funde metalinguagem com política (no seu sentido mais amplo). Para nós, da oficina, chamo a atenção para a linguagem conotativa: símile na segunda estrofe e metáforas na terceira, e as áreas semânticas (prisioneiro, cela, cárcere; poema, folha em branco, escreve).
Se, por um lado, temos imagem mais gasta como “chama que queima”; por outro,temos imagem que permite múltiplas leituras,como os dois últimos versos.
Mas no momento o que queremos mesmo é pensar sobre a primeira estrofe, cujos versos lembram a estrutura de um axioma filosófico, uma afirmação, e isto aparece com certa frequência na obra de muitos poetas.
A opção posta por Moacyr tanto serve para a poesia, quanto para a vida. O aqui e agora, o espaço e tempo estão subentendidos, porque não há como separá-los. Ou estamos inteiro nas coisas mais simples e mais corriqueiras ou estamos em falta, e na falta. Ou, triste e ironicamente, como diz o poeta, pela metade cabe a nós escrever sobre metades.
Estar inteiro não é coisa de celebridade, de holofotes, de glamour, afinal a vida não é invenção da mídia; estar inteiro é coisa do dia a dia e do que (permitam-me o jogo de palavras) não se adia. Vida que se adia, sim, é vida pela metade.
Na vida, como na poesia, não há o que se esperar. E aqui (ou seria agora?) lembramo-nos de Ouro sob água, de Suzana Vargas:

...um homem
me perguntava
sobre a melhor forma
de começar um banho
sem reparar no profundo da questão

- Entro devagar
ou de uma vez por todas? Perguntou

-Por todas, respondi
Não há céu ou inferno
que comece devagar


Pela metade talvez equivalha a devagar e inteiro, a de uma vez por todas. E Suzana agora (ou seria aqui?) nos confunde com a sugestão de que a vida também é uma questão de advérbio de modo.
Hoje são feitas a vida e a arte; para amanhã, só o arrependimento e o remorso, matéria que normalmente dá tema psicanalítico ou religioso, mas não poético. Já este parágrafo insinua que a vida tem muito a ver com advérbios de tempo. Seja o advérbio que for, mas de preferência não seja para escrever a vida que não vivemos.









Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 27 de maio de 2011

EXERCÍCIOS DA OFICINA

1 – Leia os dois textos abaixo e faça um poema com temática social,abordando algum problema atual do país.

MULHER PROLETÁRIA

Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.
Jorge de Lima

PRIMEIRO DE MAIO

Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada logo ali
E vai sorrindo, vai aflito
Pra mostrar, cheio de si
Que hoje ele é senhor das suas mãos
E das ferramentas
Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
E é vendito o fruto do suor
Do trabalho que é só seu
Hoje eles hão de consagrar
O dia inteiro pra se amar tanto
Ele, o artesão
Faz dentro dela a sua oficina
E ela, a tecelã
Vai fiar nas malhar do seu ventre
O homem de amanhã

Chico Buarque



2 – Depois de ler o poema de Drummond,faça outro,também narrativo, com tema livre.


DESAPARECIMENTO DE LUÍSA PORTO

Pede-se a quem souber
do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência
À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente
solitária mãe enferma
entrevada ha longos anos
erma de seus cuidados.

Pede-se a quem avistar
Luísa Porto, de 37 anos,
que apareça, que escreva,
que mande dizer
onde está.
Suplica-se ao repórter-amador,
ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,
a qualquer do povo e da classe média,
até mesmo aos senhores ricos,
que tenham pena de mãe aflita
e lhe restituam a filha volatilizada
ou pelo menos dêem informações.
É alta, magra,
morena, rosto penugento, dentes alvos,
sinal de nascença junto ao olho esquerdo,
levemente estrábica.
Vestidinho simples. Óculos.
Sumida há três meses.
Mãe entrevada chamando.

Roga-se ao povo caritativo desta cidade
que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial.
Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.

Levava pouco dinheiro na bolsa.
(Procurem Luísa.)
De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.)
Namorado isso não tinha.
(Procurem. Procurem.)
Faz tanta falta.

Se todavia não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.
Luísa ia pouco a cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.
Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,
É Rita Santana, costureira, moça desimpedida.
a qual não da noticia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei.
O que não deixa de ser esquisito.

Somem tantas pessoas anualmente
numa cidade como o Rio de janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.
Uma vez, em 1898,ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia
que saíra a tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje.
A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil,
ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória.
Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume
seriam, na vida, seu lote
e que sua única filha, afável posto que estrábica,
se diluiria sem explicação.

Pela ultima vez e em nome de Deus
todo-poderoso e cheio de misericórdia
procurem a moça, procurem
essa que se chama Luísa Porto
e é sem namorado.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão. Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa
e a paz intima
conseqüente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma.

Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.
O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma
pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou.
Procurem-na.
Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora
e os jornais não deram.
Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno
filial e do próximo.

Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado.
Algo de extraordinário terá acontecido,
terremoto, chegada de rei.
As ruas mudaram de rumo,
para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea
ou trazida por mão benigna,
O olhar desviado e terno, canção.

A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.
Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado
e tomará providencias.

Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a pagina:
Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,
erguerá a enferma, e os membros perclusos
já se desatam em forma de busca.
Deus lhe dirá :
Vai,
procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.

Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa ( somos pecadores )
sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.
Sim, os extraviados um dia regressam
— ou nunca, ou pode ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha
que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite,
a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo
nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa
e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos•
Calma de flores abrindo
no canteiro azul
onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intacta nos tempos.
E de sentir compreendemos.
Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
gravada no centro da estrela invisível
Amor.

Carlos Drummond de Andrade


3 - Todo texto tem uma visão de mundo: uns de forma mais explícita do que outros.No caso de Tarefa,de Geir Campos.percebemos os valores humanistas.Faça, então,um poema
em que valores sejam mais facilmente identificados.


TAREFA

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

Geir Campos


4 – Faça mais uma estrofe para o poema de Cecília, mantendo a coerência das ideias.


A ARTE DE SER FELIZ

Houve um tempo em que minha janela
se abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz. Perto da janela havia um
pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra
esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre
com um balde e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sobre
as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse. E eu olhava para
as plantas, para o homem, para as gotas
de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava
completamente feliz.
.........................................................


Cecília Meireles


6 – Leia os poemas que tratam da infância e faça outro sobre o mesmo assunto,em versos livres,como os de Drummond ou metrificados, como os de Secchin.


INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Carlos Drummond de Andrade


"DE CHUMBO ERAM SOMENTE DEZ SOLDADOS"

De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.


7 – Faça versos para o poema de Astrid Cabral, de forma que a continuação faça sentido.


ENSAIANDO PARTIDAS

...........................................................


Na praça São Sebastião galeras de bronze
destinavam-se a longínquos continentes mas
imóveis não singravam ondas de lusas pedras
deixavam-se estar molhadas tão só de chuvas
proas frustradas de horizontes e azuis.
Que estranha calmaria as conjurara, quilhas
vacinadas contra a vertigem dos ventos?
Ou estariam desde sempre fundeadas nas
invisíveis correntes d’água dos séculos?
Dobravam os sinos abafando os frenéticos
pianos a planger nos salões dos sobrados
mas o que sempre se ouvia, pouco importa
se baixo e rouco, era o gargarejar do rio
a vocação de foz e mar drenando fragmentos
de terra, arrastando de roldão os corações.

Astrid Cabral


8- Faça uma paródia do famoso poema de Bandeira.


PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida ineira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o
[pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira


9 – Serenata sintética,como o título já diz ,é um exemplo de poema curto,como vigorou nos anos 60. Faça um poema em que haja também bastante condensação da linguagem.


SERENATA SINTÉTICA

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

Cassiano Ricardo


10 – Vejamos outro texto de Cassiano Ricardo. Agora temos um de poema metalinguís-tico.Faça, então,outro em que haja questões de metalinguagem.


POÉTICA


1
Que é a Poesia?

Uma ilha
Cercada
De palavras
Por todos
Os lados.

2
Que é o Poeta?

Um homem
Que trabalha o poema
Com o suor do seu rosto.
Um homem
Que tem fome
Como qualquer outro
Homem.


Cassiano Ricardo

POEMAS E PINTURAS

FAÇA POEMAS, MOTIVADO PELOS QUADROS DE MAGRITTE, GOYA, FRIDA
KAHLO E PORTINARI.






















































quinta-feira, 26 de maio de 2011

A LINGUAGEM REFERENCIAL

Poema Brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade


antes de completar 8 anosde idade




Ferreira Gullar



O texto Poema Brasileiro,de Ferreira Gullar, é feito apenas dos versos “No Piauí de cada 100 crianças que nascem/ 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”, que se repetem e sugerem uma repetição ad eternum. Os versos se distribuem de forma diferente,valorizando a utilização do espaço em branco da página, como era típico nos 50/60.
Mas o que nos interessa no momento é chamar a atenção para o fato de que este “pequeno” poema é,na verdade,uma afirmação (ou informação) que poderia estar em um livro didático de Geografia ou em um jornal.E, como sabemos, o discurso literário se diferencia dos discursos didático e jornalístico.
Teríamos então aqui uma contradição?
Sabemos também que literário é o uso que fazemos dos textos.Portanto, esta afirmação,em linguagem denotativa, pretende-se poética, por ocupar o espaço do livro e se relacionar com os demais textos. Sim,trata-se de um poema, à primeira vista, estranho, por ser curto, informativo, didático e referencial. Levando-se, no entanto, a época em que foi feito/publicado (início dos anos 60),o pano de fundo histórico justifica a sua criação e a sua denúncia. Não sabemos hoje quantas crianças morrem no Piauí antes de completar 8 anos de idade, embora saibamos quantas pessoas morrem no Pará, por defenderem causas ambientais. Chico Mendes, no Recreio dos Bandeirantes, é nome de parque, mas no Pará talvez devesse ser nome de cemitério.
É claro que o é dito neste texto prevalece sobre o como é dito, como prova a referencialidade das palavras.


P.S. Como exercício, poderíamos recortar frases dos jornais, semelhantes às escolhidas por Ferreira Gullar. Talvez tenhamos material para um livro inteiro, para espanto e tristeza.








antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade


Ferreira Gullar