sábado, 28 de abril de 2012


LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO



Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade


     Neste poema, Drummond usa a técnica da oposição.  Todos os fatos expostos têm a finalidade de levar o leitor ao último verso. E, ao dizer, que havia jardins e manhãs naquele tempo, na verdade, ele quer dizer que não há mais jardins e manhãs nos dias de hoje, De uma caso particular, Clara, o poema vai ao universal (o mundo inteiro, A  Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.) e os fatos simples  como ter medo de gripe, calor e insetos podem ser lidos como medo de perigos maiores, coletivos, e não só individuais.

     Prestemos atenção de que é não sobre Clara que o poema fala, mas de um mundo em que acontecimentos pequenos e cotidianos, idealizados pelas cores (verde, dourado, azul, róseo, alaranjado), dão lugar a um mundo do qual o leitor não sabe nada, senão que “jardins’ e “manhãs” desapareceram. Podemos interpretar estas duas palavras de várias maneiras, uma vez que estão impregnadas pelo simbólico.

    De qualquer forma, o texto fala de ausências e faltas, sejam elas quais forem. Trata-se de uma crítica ao momento (em que foi escrito e/ou publicado), em que – repetimos – o verbo no pretérito imperfeito quer se referir ao presente. Temos, portanto, uma oposição temporal.

    Esta técnica de dizer indiretamente algo foi muito usada em tempos repressores para burlar a censura mais rigorosa, ou, com intenção irônica, para deixar que o leitor conclua sem muita dificuldade o que o autor sugeriu.





Marcus Vinicius Quiroga

      

sábado, 21 de abril de 2012




SACRO LAVORO

as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto

                                                                          Paulo Leminski

   Aproveitando a deixa de Leminski, pensemos o “óbvio e o nunca visto”. Há muito já ouvimos o impasse da arte no fim do século XX. Repetimos que tudo já foi feito e que não há possibilidade de inovações, no entanto os artistas persistem, sinal de que no fundo ainda acreditam em, de repente, não mais que repente, criar algo verdadeiramente novo.


    Enquanto não surge um Picasso, uma obra que desloque a visão do mundo, vejamos que cabe ao poeta usar o material já existente de uma forma diferente. E talvez isto seja originalidade. Insistimos: original talvez seja combinar de um modo particular os recursos poéticos disponíveis no momento.

    Em sã consciência, ninguém pode dizer que temos uma poesia legitimamente nova, nem a que é feita pelos autores mais jovens. Vemos que somos todos do século XX e que este século ainda é uma continuação, sem indícios de rupturas profundas, como ocorreram há 100 anos.

     O próprio Leminski é um exemplo. Herdeiro das ditas vanguardas de 50 e 60, retoma o verso, valorizando a camada sonora das palavras, realizando só em parte o princípio concretista do poema verbovoco- visual; adiciona o humor, o trocadilho, o jogo de palavras; mantém a reflexão metalinguística; prima pela concisão discursiva, sem cair no texto monossilábico, e oferece uma obra que, principalmente depois de sua morte, exerceu forte influência em alguns escritores.

     O título de um de seus livros  - “Distraídos - , venceremos” no qual ecoa o lema “unidos, venceremos” serve para mostrar que, fazendo uso de uma referência ao óbvio de nosso repertório (o lema políticos), ele introduz uma rima (distraídos) que desfaz o pensamento inicial e a lógica, pois não esperamos que os distraídos (e, sim, os atentos) vençam.

      Leminki sabia que o “nunca visto”, ou seja, 100% de informação nova, afasta totalmente a comunicação e ele, como letrista também, reconhecia a necessidade do contato com o leitor de forma mais rápida e eficiente. Não nos esqueçamos de que o grau de comunicabilidade de um texto depende sempre da relação entre redundância e informação nova.  Se muito redundante, não precisaria ter sido feito; se completamente novo, torna-se hermético e não é compreendido. A arte exige que (com perdão da velha imagem) andemos no fio da navalha.          


Marcus Vinicius Quiroga







          

segunda-feira, 16 de abril de 2012

VIVER, VERBO INTRANSITIVO

Exercício

Corrija a postura.

Dose a carga.

Varie os movimentos.

Concentre-se na execução.

Mantenha o ritmo. (Se preferir, acelere.)

Alongue a curiosidade.

Flexione as demandas.

Evite as certezas.

Cuide das lesões.

Aumente a resistência.

Contraia o pranto.

Repita o riso.

Fortaleça o espírito.

Supere a dor.

Melhore o desempenho.

Insista. Persista. Não desista.

Respire sonhos, desejos, fantasias.

Relaxe, descanse e comece tudo de novo.

A vida é uma grande academia. Viver, o inevitável exercício.

Estela Menezes

Um texto alegórico usa várias palavras da mesma área semântica metaforicamente. E difere da utilização de palavras que tenham relação de significado, sem, no entanto, terem sentido conotativo. No segundo caso, teríamos apenas a intensificação de uma área de significação.

No poema de Estela Menezes a palavra “academia” no último verso esclarece a alegoria realizada, lembrando que no texto alegórico vemos sempre inúmeras analogias. Ou seja, a poeta compara os exercícios da vida aos da academia: físicos de um lado; e não físicos (para ainda não dizermos metafísicos), de outro.

Pouco a pouco o vocabulário típico de uma aula de ginástica (postura, carga, movimentos, execução, ritmo..) é contaminado por palavras de outra área como curiosidade ou certezas. E adquirem ambiguidade em versos como “cuide das lesões” ou “aumente a resistência”, pois tanto podemos entender que se referem aos cuidados com o corpo ou com a mente. Isto sem mencionarmos a feliz fusão de “flexione as demandas”, quando as duas áreas se reúnem: a flexão externa e a demanda interna.

Do ponto de vista linguistíco, reparemos o uso reiterativo do modo imperativo, como se fosse a voz de comando de um professor de ginástica, cujo ponto máximo é o verso que desmascara as intenções do texto: “Respire sonhos, desejos, fantasias.”. Trata-se, portanto, de uma aula existencial, e não corporal.

Vejamos ainda como a autora diversifica o uso de vida e viver, de sentidos tão próximos. Se vida é a academia, o espaço para o exercício, viver – verbo de ação e intransitivo – é o próprio exercício, simples como flexões diárias, e denso, como os desejos e as fantasias mais profundas.

Este poema é um exemplo da interferência do poético (“exercícios” existenciais) no prosaico (academia de ginástica) e do deslocamento de sentidos, pois uma área de significados se apropria de outra. Diríamos até que a ideia do texto que antecede a sua realização é que já determinou o efeito poético.

A forma (alegórica e precisa) é que faz com que o leitor se sensibilize e pense sobre o que foi dito. Com permissão da poeta, propomos que escrever poesia também pode ser um inevitável (e agradável, por que não?) exercício.

Marcus Vinicius Quiroga