segunda-feira, 29 de outubro de 2012

PEQUENAS PARÁBOLAS





I
Afundou
porque tinha pedras nos bolsos
Culpou a água
e não se desfez das pedras

II
O funcionário
quis impor horários
e métodos à água
E se surpreendeu
quando percebeu nas mãos
suas normas encharcadas

III
O engenheiro teve uma ideia inútil:
fazer um esteira de água,
para que o movimento
não o tirasse do lugar

IV

Nos salões
a boca ria alegrias e alegrias
No fim da noite
diante do espelho
a água lavou a anestesia
e os olhos se umedeceram de tristeza

V
Jogava água
todos os dias no vidro da janela
para enxergar o dia ensolarado
Teria sido mais fácil
se desfazer das escuridões

VI
Atirava baldes
obsessivamente no assoalho
porque não o admitia sujo
E a água escorria
para fora da história

VII

A água reconhece na nascente
a sua causa
Os dias que não veem o antes e o depois
ignoram a nascente
e buscam a água no vazio

VIII
Trancou portas e janelas
Muniu-se de teorias
e racionalizações
Não ouviu o relâmpago
e se espantou com a chuva

IX
Lavou todas as pegadas,
todos os resíduos
como o analista mandara
Apagou assim a estrada do retorno

X
Afundou
porque tinha pedras nos bolsos
Culpou os bolsos
e carregava as pedras nas mãos

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

CANÇÕES DA AMÉRICA


CANÇÕES DAS  AMÉRICAS

Unencounter

Why did you too leave this town, my friend?
Do you remember that tune
The song you sang to me
Asking about the friends
Who were leaving the town?
You didn't see but I cryed
Because it was my time to go
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
Do you remember that tune my friend?
I can remember you saying
Maybe those people are searching for their place
Maybe their time isn't here
But you could never understand
Because it was your time to stay
But always the same goes on
Always the same goes on
Now you left the town
And I'm here looking for you

Canção da América

Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

     Ouvi Unencounter  nos Estados Unidos pela primeira vez.  E depois quando ouvi  no Rio esta música com o título de Canção da América, algo me soou familiar e irônico. Ela tinha sido para mim de fato uma canção lá da América. Reparem que a letra em português não é uma  tradução literal, mas uma  letra que fala sobre a outra letra. O verso “assim falava a canção que na América ouvi “ parecia que tinha sido feito para mim. Além do fato de que em outro país nós sempre nos lembramos saudosos de nossos amigos...
Não sei se estou sendo claro: a música foi gravada primeiro em inglês e lançada lá fora, antes da versão brasileira.
    A vida tem dessas metalinguagens.

    Agora vamos à oficina.  Nos versos “Mas quem ficou, no pensamento voou/ Com seu canto que o outro lembrou/ E quem voou, no pensamento ficou”, temos um quiasmo (ficou-voou/voou-ficou) e, ao mesmo tempo, um paradoxo (como quem voou pode ter ficado?).  Lembremo-nos de que o quiasmo diz respeito apenas à estrutura, mas o paradoxo trata do sentido e, portanto, é passível de interpretação.
      Aqui vai a canção da América para os amigos que voaram e ficaram ou que ficaram e voaram. A vida tem desses impasses. O Milton e seus parceiros sabem disto.


Marcus Vinicius Quiroga.






domingo, 14 de outubro de 2012


 

   Após assistir a Nada será como antes, paro para pensar que as canções de Milton Nascimento foram a trilha sonora de minha vida. E me corrijo: foram a trilha sonora da minha geração. Então vejo: idade nem sempre corresponde à geração. Ou: há muitas gerações que são contemporâneas.
   Muitas vezes me surpreendi, ao reconhecer que pessoas do mesmo tempo e da mesma cidade viveram coisas tão diferentes e como  podemos ser distantes daqueles que supostamente pertencem (pertenceram) à nossa geração.

 

Certas Canções


Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gesto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

 

    Na MPB não há compositor com a voz de Milton ou (Se preferirem)
não há cantor com as suas composições. Daí seus discos terem, desde os anos 60, sido o pano de fundo musical da nossa história.
    A primeira estrofe fala, de forma especular, da identificação das suas canções com os nossos pensamentos. Outros outubros virão.Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Coração americano. Acordei de um sonho estranho. Um gosto, vidro e corte. Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair.

 

Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 4 de outubro de 2012



O NOME

Estão demolindo
o edifício em que não morei.
Tinha um nome
Somente meu.

Meu, de mais ninguém
o edifício
Não era meu

Rápido passando
Por sua fachada
Lia o nome
Que era e é meu.

Cai o teto,
 ruem paredes
internas.
Continua o nome
Vibrando entre janelas
Buracos.

Sigo a destruição
de meu edifício
amanhã o nome
letra por letra
se desletrará

Ficará em mim
o nome que é meu?
Ficarei
para preservá-lo?
Amanhã o galo
Cantará o fim
do que no edifício
E numa pessoa
cabe em um nome
e  é mais do que um nome.

Carlos Drummond de Andrade

   O nome do edifício ou  o nome de qualquer coisa, o nome da algo concreto,
que visivelmente se desfaz: a demolição. Mais uma vez o poeta se vale do
substantivo concreto para falar (ou insinuar ) de substantivos abstratos.
   Mas aqui fica a questão: nome é concreto ou abstrato? Um nome pode ser demolido? O que cabe em um nome que é mais que um nome?   
   Em “O São Borja foi demolido”, o nome é gramaticalmente concreto. Só que diante dos escombros do edifício, “São Borja” torna-se um nome-lembrança,
uma lembrança sem moldura, sem prego e sem parede.

Marcus Vinicius Quiroga