terça-feira, 26 de junho de 2012




MODO DE AMAR



Amor como tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpagos e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.



Astrid Cabral





ENSINAMENTO


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


Adélia Prado





     Vejamos os dois textos de duas poetas sobre o mesmo tema. Em ambos o texto se encaminha para uma oposição ( “E não me falem de ruínas” e “Não me falou em amor”). Por coincidência (verifico agora) o verbo falar na voz de outra pessoa.
      Ao contrário do que ocorre normalmente, quando usamos a estrutura opositiva, é a primeira referência a valorizada: o amor desmedido em Astrid e o amor de pequenos gestos em Adélia.
    No primeiro, metáforas arrebatadoras (tremor de terra, relâmpagos, sóis, auroras, açudes, tempestades...); no segundo, o realismo doméstico (pão, café, fogo com água quente...); no primeiro o predomínio das imagens visuais (relâmpagos, sóis, auroras, faíscas, incêndios, trevas, noite e cinzas); no segundo, a alusão sensorial (fogo e quente). Nos dois, o uso dos sentidos para transmitir o contato, tanto ardoroso quanto ameno.
     No primeiro há dois polos: o positivo de “tremor de terra” e o negativo de “ruínas”;  no segundo, não há negatividade: pão , café e água no fogo representam o oferecimento amoroso.
     Lembremos que no poema de Adélia há ainda outra oposição: estudo x sentimento. Ou o sentimento do gesto cotidiano de atenção caseira x o estudo, representado pela palavra.
     Aqui, outras questões: sentimentos não precisam de palavra? são maiores do que as palavras? não cabem em palavras?
     Seja lá qual for a resposta (caso exista), sentimentos também sempre
dizem respeito a leituras

Marcus Vinicius Quiroga


P. S. De que vale a “palavra” amor, se não há café?   

sexta-feira, 15 de junho de 2012


Os poemas


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...



Mário Quintana



  A metaforização do texto de Quintana pode ser relacionada com a de vários outros poemas
como As Pombas, de Raimundo Correa, ou Inspiração, de Paulo Henriques Britto, entre muitos outros. Além, disso o “pássaro”´ faz parte de uma tradição literária, como símbolo de liberdade
e sempre carregado de significações positivas.
   Neste caso, o poema é um exemplo de elevado grau de comunicabilidade. Estatisticamente
(por razões eu desconheço), o leitor mediano prefere versos livres e brancos, como se isto lhe
facilitasse a leitura e a compreensão.
    Depois também aprecia as metáforas. Aqui todas se referem à mesma área semântica  (pássaros, pousam, voo, alçapão, alimento) e culminam  com a duplicidade de sentido de alimento ( material e imaterial, ou exterior e interior ) .
   O último verso é de fato o objetivo do poema: desfazer a ideia de que a poesia está do lado de fora, de que é motivada por causas externas. Na concepção de Quintana, as palavras apenas libertam a poesia que já existe nas pessoas.   

domingo, 10 de junho de 2012













CIRCULAR

(Trenzinho caipira ao fundo)



Da janela

só vejo o movimento da paisagem

enquanto o tempo,

escoando na ampulheta

quebrada da história,

ri cinicamente



Da janela

a paisagem me ignora

ensimesmada

atenta apenas

ao rodopio do vento



De qualquer forma

árvores me acenam

indiferentes

ao movimento

que sempre retorna



Da janela

me despeço

sem gestos largos

das paisagens fincadas

no pretérito



O vidro que vê

tanta terra para trás

é o que separa

os lados

do olhar



Da janela

se parte

a paisagem em duas

Com o vento na cara

a vida se contrai

e dura

sexta-feira, 1 de junho de 2012


 


 




ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

 

 


BEM NO FUNDO



no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nosso problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás nã há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas


LÁPIDE 1
epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.



Nestes três poemas de Leminski a palavra "silêncio" costura as ideias e os hiatos, os intervalos entre palavras e silêncios. Nos três também de alguma forma o humor. E que os engravatados me perdoem, mas humor é fundamental, pois humor, xará Vinicius, é uma espécie de beleza, só que inteligente.


No primeiro, o inesperado: convidar para ficar em silêncio, não para conversar. E, segundo a lenda, isto ocorria com Joyce e Beckett em Paris. Coisa de irlandeses, diriam alguns.


No segundo o tema igualmente sério da 2ª e 3ª estrofes desemboca no comentário escrachado, com a personificação caricatural dos problemas sob a forma de família. O ridículo da imagem ameniza o possível sofrimento insolúvel.


E no terceiro, a ironia (ou autoironia) se dá mais uma vez com a inversão: o silêncio é tudo o que poeta tinha para dizer. Pode parecer tolo, mas tente dizer o silêncio com palavras e veja que muitas vezes (em alguns momentos, na maioria das vezes) é o que cabe ao poeta.


Quem quiser que ria com Leminski que, paralelamente ao humor da ficção, envenenou-se até a última gota. Se venenos silenciam, humores iluminam.



Marcus Vinicius Quiroga