sexta-feira, 30 de novembro de 2012




  


     Sempre digo que normalmente o leitor (e, portanto, o escritor) não pensa muito na estrutura sintática da obra. E reconheço que é difícil ser inovador sintaticamente, a ponto de criar marcas estilísticas. Basta fazer a pergunta: Quantos poetas você reconhece pela sintaxe?
    Ouvindo duas canções com Renato Teixeira, prestei atenção a versos que trazem a ideia de causa. Em Romaria, de sua autoria, diz Como eu não sei rezar / Só queria mostrar/Meu olhar, meu olhar/ Meu olhar”. E em Tocando em frente, em parceria com Almir Sater, temos “Ando devagar/porque já tive pressa”.
    Na primeira, os versos são o desfecho da letra e a oração causal inicia o período, tendo, pois, papel de destaque: o fato de não saber rezar se sobrepõe ao de olhar. Já na segunda, os versos iniciam a canção e a oração causal vem depois da principal. Então o fato de andar devagar merece mais nossa atenção do que a causa de já ter tido pressa. Lembremo-nos de que sintaxe diz respeito à ordem. Se naquela a sua luz evidencia a ausência da reza, nesta, o modo vagaroso de “andar”.
    Como sabemos, toda ideia de causa traz implícita a de consequência e vice-versa, o que explica a troca costumeira em salas de aula das duas ideias. Já, fora das salas, o que mais vemos é a dificuldade de reconhecimento da causa, como se os fatos das orações principais ocorressem soltos no ar.  
    Em Tocando em frente, a antítese devagar-pressa explica a relação de causalidade de forma curiosa: a causa de alguma coisa é o seu oposto. Diria ainda que vale a pena pensar sobre a causa, seja no início ou no final do período, pois, sem ela, paramos no reconhecimento dos fatos, mas não fazemos o seu entendimento.


Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 27 de novembro de 2012



AQUARELA
(Vinícius de Mores e Toquinho)

Numa folha qualquer 
Eu desenho um sol amarelo
 
E com cinco ou seis retas
 
É fácil fazer um castelo
 

Com o lápis em torno da mão 
E me dou uma luva
 
E se faço chover
 
Com dois riscos tenho um guarda chuva
 

Se um pinguinho de tinta 
Cai num pedacinho azul do papel
 
Num instante imagino
 
Uma linda gaivota a voar no céu
 

Vai voando, 
Contornando a imensa curva norte sul
 
Vou com ela viajando
 
Havaí, Pequim ou Istambul
 

Pinto um barco a vela, 
Branco, navegando,
 
É tanto céu e mar num beijo azul
 

Entre as nuvens vem surgindo 
Um lindo avião rosa e grená
 
Tudo em volta colorindo
 
Com suas luzes a piscar
 

Basta imaginar e ele está partindo, 
Sereno, lindo,
 
E, se a gente quiser,
 
Ele vai pousar
 

Numa folha qualquer 
Eu desenho um navio de partida
 
Com alguns bons amigos
 
Bebendo de bem com a vida
 

De uma América a outra 
Consigo passar num segundo
 
Giro um simples compasso
 
E num círculo eu faço o mundo
 

Um menino caminha 
E caminhando chega num muro
 
E ali logo em frente
 
A esperar pela gente o futuro está
 

E o futuro é uma astronave 
Que tentamos pilotar
 
Não tem tempo nem piedade
 
Nem tem hora de chegar
 

Sem pedir licença 
Muda nossa vida
 
E depois convida
 
A rir ou chorar
 

Nessa estrada não nos cabe 
Conhecer ou ver o que virá
 
O fim dela ninguém sabe
 
Bem ao certo onde vai dar
 

Vamos todos numa linda passarela 
De uma aquarela
 
Que um dia enfim
 
Descolorirá
 

Numa folha qualquer 
Eu desenho um sol amarelo
 
(que descolorirá)
 
E com cinco ou seis retas
 
É fácil fazer um castelo
 
(que descolorirá)
 

Giro um simples compasso 
E num círculo eu faço o mundo
 
(que descolorirá)
 


     Sem dúvida, Toquinho e Vinícius de Moraes  tiveram um dos “casamentos” mais felizes da MPB   E o segundo tratava de fato suas parcerias como casamentos. Mas reparemos como se dá o casamento entre letra e música em Aquarela.
      Esta canção fez muito sucesso e se tornou um hit da dupla, agradando ao público dos 8 ao 80. A área semântica infantil nos faz pensar em uma canção para crianças. Subitamente os versos “ E o futuro é uma astronave/Que tentamos pilotar” mudam tudo, pois tentamos pilotar”, já não temos a certeza e o controle.
      Distraídos, talvez cantemos alegres a canção sem prestar atenção na armadilha dos versos finais. O refrão “que descolorirá” se intromete, sugerindo o desfecho adverso, ou seja, tudo será desfeito: o sol amarelo, o castelo e o mundo. Lembra-nos o caso de A Banda, de Chico Buarque, cantada normalmente com entusiasmo, embora terminasse de modo desiludo:”Mas para meu desencanto/O que era doce acabou/Tudo tomou seu lugar/Depois que a banda passou/E cada qual no seu canto/Em cada canto uma dor/Depois da banda passar/Cantando coisas de amor/Depois da banda passar/Cantando coisas de amor”.
    Leitores dos existencialistas, diríamos que o futuro é o próprio homem e somente por ele é feito, portanto, não teríamos desculpas para explicar ou ler os acontecimentos. E pensamos de forma contrária aos versos “Nessa estrada não nos cabe/ Conhecer ou ver o que virá”. Se o lápis se encontra em nossas mãos, como podemos nos surpreender com o desenho?  


Marcus Vinicius Quiroga 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012




            ÀS BAILARINAS

            Braços que se abrem para abarcar o mundo.
            Pernas que se alongam procurando caminhos.
            Pés que  desenham múltiplas mandalas.
            Mãos que buscam o suplicado infinito.

            Cabelos, olhos, hora, nuca
            cintura, torso, músculos.

            Mas a bailarina sabe
            que a cada movimento da dança
            corresponde um movimento do espírito.


Cristina da Costa Pereira


Notemos no poema alguns recursos estilísticos: o paralelismo sintático na 1ª estrofe; a enumeração e a representação metonímica, na 2ª; o uso do conectivo  adversativo para afirmar a ideia fundamental do poema (as estrofes anteriores são a  preparação para a inversão da última).  E, principalmente, observemos o jogo concreto x abstrato no final: no movimento da dança (substantivo abstrato) está implícito a concretude do corpo (substantivo concreto), que não se opõe ao espírito.  Antes estabelece uma relação de correspondência, de equivalência. Especularmente,  ambos se refletem. Ao mostrar aptidão própria do que é concreto – movimentar-se -, o espírito inaugura o poético Na palavra movimento incide a luz da linguagem. 



 Marcus Vinicius Quiroga





quinta-feira, 8 de novembro de 2012


DIÁLOGO

Quem pôs este porto
no meio da sala?
Quem trouxe a tempestade
no vazio das frases?
Quem mantém a âncora
presa no pensamento?
Quem sentou-se à espera
de um rodamoinho?

Quem navega à deriva
no fundo do espelho?
Quem se fez de ilha
no jogo de estátuas?
Quem do continente
acena lenços fictícios?
Quem afoga faróis
nas águas cegas da inércia?

A caixa de medo espia
o uso equivocado do tempo,
enquanto ondas se sucedem
dos dois lados da janela

Marcus Vinicius Quiroga
   

domingo, 4 de novembro de 2012

CANÇÕES DE AMIZADE




AMIGO, AMIGA

Meu pensamento viaja
Em busca de encontrar
Amigo, amiga
Quando viajo por terra
Me sinto mais seguro
Em terras de beira-mar
Amigo, amiga procuro
Meu coração é deserto
Em busca de encontrar
Amigo, amiga ou um rio
Ou quem sabe um braço de mar
Nas terras de beira-rio
Eu sei, me sinto seguro
Em todo rio me lanço
De todo cais me afasto
Molho cidades e campos
Em busca de encontrar
Caminho de outro rio
Que me leve no rumo do mar
Mas falta amigo, amiga
Meu coração é deserto
Amigo, amiga me aponte
O rumo de encontrar
Amigo, amiga ou um rio
E quem sabe um braço de mar
Meu pensamento viaja

 

QUE BOM AMIGO

 

Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser

Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser

Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida
Será você
Sem preocupação

 

CORAÇÃO DE ESTUDANTE


Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar
Pode estar aqui do lado
Bem mais perto que pensamos
A folha da juventude
É o nome certo desse amor
Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Quantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora, cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê
Flor  e fruto
Coração de estudante
Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo
Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes, planta e sentimento
Folhas, coração,
Juventude e fé.


       A amizade é cantada por Milton em mais três letras. São bem simples. A primeira trata de viagem e busca, ou seja, de viagem mais temporal do que espacial. E a viagem espacial se dá simbolicamente em terra ou em rio e braço de mar.      
       Em oposição ao elemento água, a metáfora-núcleo: “Meu coração é deserto”. O encontro significa o fim do deserto, daí as águas do rio ou mar.
       O motivo viagem-busca se desdobra em ideias de movimento: “Em todo rio me lanço/De todo cais me afasto, ou em “Caminho de outro rio/Que me leve no rumo do mar”.
       Se amizade é vista no espaço como um porto seguro, o vento do tempo desfaz os portos e naus se soltam das âncoras. Mas como o vento habita os mares, outras amizades surgem. O que importa, metaforicamente, é o coração não ser deserto.


Marcus Vinicius Quiroga  

CANÇÕES DA AMÉRICA




CANÇÕES DAS  AMÉRICAS

Unencounter

Why did you too leave this town, my friend?
Do you remember that tune
The song you sang to me
Asking about the friends
Who were leaving the town?
You didn't see but I cryed
Because it was my time to go
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
Do you remember that tune my friend?
I can remember you saying
Maybe those people are searching for their place
Maybe their time isn't here
But you could never understand
Because it was your time to stay
But always the same goes on
Always the same goes on
Now you left the town
And I'm here looking for you

Canção da América

Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

     Ouvi Unencounter  nos Estados Unidos pela primeira vez.  E depois quando ouvi  no Rio esta música com o título de Canção da América, algo me soou familiar e irônico. Ela tinha sido para mim de fato uma canção lá da América. Reparem que a letra em português não é uma  tradução literal, mas uma  letra que fala sobre a outra letra. O verso “assim falava a canção que na América ouvi “ parecia que tinha sido feito para mim. Além do fato de que em outro país nós sempre nos lembramos saudosos de nossos amigos...
Não sei se estou sendo claro: a música foi gravada primeiro em inglês e lançada lá fora, antes da versão brasileira.
    A vida tem dessas metalinguagens.

    Agora vamos à oficina.  Nos versos “Mas quem ficou, no pensamento voou/ Com seu canto que o outro lembrou/ E quem voou, no pensamento ficou”,temos um quiasmo (ficou-voou/voou-ficou) e, ao mesmo tempo, um paradoxo (como quem voou pode ter ficado?).  Lembremo-nos de que o quiasmo diz respeito apenas à estrutura, mas o paradoxo trata do sentido e, portanto, é passível de interpretação.
      Aqui vai a canção da América para os amigos que voaram e ficaram ou que ficaram e voaram. A vida tem desses impasses. O Milton e seus parceiros sabem disto.


Marcus Vinicius Quiroga.