terça-feira, 30 de julho de 2013

APRENDENDO COM CECÍLIA


                                     CECÍLIA MEIRELES
                                        

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

   Poema simples, com título mais do que simples, com 5 quartetos, rimados normalmente (adjetivo com adjetivo, verbo com verbo...).
Ou seja, nada de mais.  
    Vejamos, entretanto, outros aspectos do texto:

1 – A relação do abstrato e do concreto: sonho e navio
 
2 – As imagens como “mãos molhadas do azul”

3 – A sonoridade de “e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

4 – A escolha de uma área semântica para metaforização: navio, mar, ondas, naufragar, molhadas, praia, águas, fundo, areias

5 – O final em que se dá estranhamento de “tudo estar perfeito”
coincidir com as ”duas mãos quebradas”.




Exercícios


1 – Fazer poemas com:

a) a fusão do abstrato com o concreto (1)

b) o uso da aliteração (3)

c) a definição de uma área semântica para as imagens (4)

d) a quebra do lirismo pela força da imagem final como

“meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.”


Marcus Vinicius Quiroga


sexta-feira, 19 de julho de 2013

O DITO E O OCULTO

Dia 5

Ruy Maurity
Uma noite clara, clara e macia
Quase madrugada, na beira do dia
O garçom atento, mal acostumado
Do lado de dentro, sempre de um lado
Você me querendo mais do que eu preciso
Mais do que eu entendo
Do lado de dentro, sempre à mesma hora
Na mesa do centro, do lado de fora
Eu queria tanto, precisava tanto
Pois sabia quanto eu não tinha nada
Quase madrugada calma e macia
Minha camarada.
Não sei, talvez amanhã eu não sou mais eu
De manhã nada aconteceu, aconteceu
Vejo a ilha rasa, longe no oceano
Cada um pra casa com o seu engano
Rua tão vazia, vamos de mãos dadas
Na volta do dia, na volta do nada
O garçom sorrindo, já mudou a roupa
Mais um dia findo.
        Eis aqui um exemplo de texto elíptico, ou seja, de um texto que escreve nas entrelinhas,
 deixando o sentido no ar, sem completar os versos. Por se tratar de uma letra (e mais ainda neste caso)  é fundamental ouvir a música e, de preferência, com a interpretação de Taiguara. Vejamos o verso “De manhã nada aconteceu, aconteceu”. Na segunda oração, qual seria o sujeito?
    A letra  é feita de sugestões , de cenas entrecortadas, em um jogo de desloca a visão do exterior para o interior, alternadamente.

        Faça um texto em que haja sentidos elípticos, com o cuidado para que não seja um texto incompreensível, caso você omita em demasia. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

NAS MELHORES LOJAS DE RAMOS


AFFONSO E SEUS CÃES




Affonso Romano de Sant’Anna

PARA TIGRÃO

Passo a mão no pelo deste cão
deitado no tapete.
Essa cabeça grande, quente, magnífica.
Passo a mão e ele aceita
Meu carinho humano, animal.
No entanto, morreremos, os dois.
Nos tocamos ternamente.
Neste instante
- não morreremos jamais


RITUAL DOMÉSTICO


Toda noite
acendo algumas velas na sala
enquanto minha mulher prepara o jantar.
Somos nós dois
e essa cachorrinha meiga
com seu estoque inesgotável de afeto.
Comemos, conversamos
(as velas em torno)
elogio a comida surpreendente
que ela sempre faz.

Falamos do mundo. De nós mesmos.
Volta e meia, ela diz : " Vou te dizer uma coisa
que só posso dizer para você"
e faz uma revelação, como se abrisse um poema.

Calmamente o jantar chega ao fim.
Vou tirando as louças
e começo a apagar as velas uma a uma
enquanto soam os últimos acordes barrocos.

Menos um dia, uma noite
- a mais.

Junto à porta, a cachorrinha
ora deita-se estirada
ora late para o nada.


RADAR

Como esses radares estatelados para o cosmos
ergo na montanha
meu olhos para o espanto.
Um vaga-lume sabe melhor sua direção.
Vasculho, no entanto, alguns sinais
antes que a nave de meu corpo
se dilua no horizonte.

Esta semana descobriram
um berço de galáxias
sabem de que é feito o desastroso núcleo
de um cometa
também alteraram o DNA de uma bactéria
que pode viver noutro planeta.

esta cachorrinha deitada
no entardecer comigo nesta grama
olfata o mundo
mas diferente de mim
só se propõe problemas
que pode resolver.


1 – Em Para Tigrão, há o paradoxo “morreremos x morreremos jamais”. A relação afetiva entre homem e cão transforma o momento passageiro em algo eterno, daí não morrerem naquele instante.
     Faça um texto em que haja no final uma (às vezes aparente ) contradição de ideias.

2 – Em Ritual doméstico, outro paradoxo em “Menos um dia, uma noite - a mais”. Faça um texto em que haja a descrição de uma cena, como a deste jantar, na qual subitamente se instaura o poético, graças ao olhar que vê no menos o mais.

3 – Em Radar, há várias  comparações e diferenças, como entre radar
e vaga-lume. A última coloca lado a lado o homem e um cachorrinha (supostamente menos inteligente), para, através do confronto, revelar a ingenuidade e/ou pretensão do homem.
     Escreva um texto que se valha de uma comparação para valorizar uma afirmação.   



Marcus Vinicius Quiroga


segunda-feira, 8 de julho de 2013

O MINÉRIO DO POEMA





                                           Augusto Sérgio Bastos



Pseudopsicologia da composição

                                                  A João Cabral

 Espero meu poema 

com as mãos lavadas.

A folha em branco,

sem máculas e pudica,

é berço de palavras,

solo fértil para poesia.

Nela não há o amanhã

nem as incontáveis vésperas.

 

Em breve o texto se revelará.

Faço um pedido:

seja mineral 

o papel onde o verso se inscreve,

seja mineral o próprio verso.

Mas que eu possa debulhar as palavras,

recolher as sílabas

e fecundar o poema. 

 

EXERCÍCIOS COM DRUMMOND 2


Construção




Um grito pula no ar como foguete.

Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.

O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.

O sorveteiro corta a rua.



E o vento brinca nos bigodes do construtor.



    Reparemos no pequeno poema que cada verso só tem um verbo e que não há conectivos (conjunções, pronomes relativos, preposições) unindo os versos, com exceção do último. A ausência de conectivos e os períodos simples caracterizam um escrever primário, típico da criança, de quem está se iniciando na uso escrito da língua, no entanto Drummond e vários outros poetas se valeram desta construção para fins literários.

     A independência dos versos valoriza o que é dito em cada um deles e, por justaposição, vai acrescentando os fatos desta cena de construção, estimulando a visualização gradativa por parte do leitor.

      O último verso, em destaque, destoa dos demais pela surpresa da ação corriqueira e sem significado para a construção: o vento brinca nos bigodes. A construção em si (barro, caliça, andaimes, placa) está no poema a serviço do acontecimento banal, que é o pequeno movimento dos bigodes do construtor.

     A câmara (digamos assim) se desloca da panorâmica para o close do detalhe: o bigode é a metonímia do homem. Humaniza-se a cena e a visão do eu poético.


    Faça um poema em que o  movimento do olhar como no cinema ( panorâmica, plano médio, close...)
seja percebido, mostrando a proximidade ou o afastamento do eu poético em relação ao objeto.    

EXERCÍCIOS COM DRUMMOND 1

FAZER UM POEMA SOBRE A CIDADE, TENDO COMO MOTIVAÇÃO OS TEXTOS ABAIXO.

RIO DE JANEIRO

“Fios nervos riscos faíscas
As cores nascem e morrem
Com um impudor violento
Onde meu vermelho? Virou cinza.
Passou a boa! Peço a palavra!
Meus amigos todos estão satisfeitos
Com a vida dos outros.
Fútil nas sorveterias
Pedante nas livrarias…
Nas praias nú nú nú nú nú
Tú tú tú tú tú no meu coração.
Mas tantos assassinatos, meu Deus.
E tantos adultérios também.
E tantos, tantíssimos contos do vigário…
(Este povo quer me passar a perna)
Meu coração vai molemente dentro de um táxi!


CORAÇÃO NUMEROSO

Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptuosidade errante do colar
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais.
A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Com a palavra





MEMÓRIA LIVRE DE LEILA (LEILA DINIZ)
 

Taiguara

Essa menina livre que Deus chamou
Essa mulher de sol que se deu e amou
Essa viola amiga que harmonizou guerra e liberdade
Essa bruxa solta pela cidade
Não vai partir, não vai morrer...

Essa verdade santa que fez igual
O coração e a carne e o bem e o mal
Essa paixão de vidro que abria o peito de quem sofria
Que abria a flor pra quem não sabia
Não vai secar, não vai calar

E esses amantes livres que já nasceram
Vão ser iguais no amor homens e mulheres
Vão ser o mesmo barro no mesmo chão
A mesma porta aberta com a mesma mão
Lá fora a mesma chance e o mesmo perdão

E que da tua boca não saia mais
O que faz dois amantes dois desiguais
E que na tua cuca não entre mais essa diferença
Que faz tombar uma companheira que vem somar
Que vem amar

E essa menina livre que Deus chamou
Essa mulher de sol que se deu e amou
Essa viola amiga que harmonizou guerra e liberdade
Essa bruxa solta pela cidade
 
Não vai partir, não vai morrer
Vai viver no amor de cada mulher


segunda-feira, 1 de julho de 2013

EXERCÍCIO DE INTERTEXTUALIDADE



DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora
De desalento. . . de desencanto. . .
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente. . .
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Manoel Bandeira
 

DESCENDO LADEIRAS

Eu faço versos
como quem desce ladeiras
rolando verbos
abocanhando cantos

Versos carregados
de mistérios
Soltos
volúveis
ásperos

Eu faço versos
como quem soluça

Marcia Barroca





    Descendo ladeiras faz parte de POEMAS NUS, novo livro de Marcia Barroca, e estabelece uma relação intertextual com Desencanto, de Manoel Bandeira.
     Façamos também um poema em que explicitemos o modo como escrevemos, usando o início de Desencanto: “ Eu faço versos como quem...”.

Marcus Vinicius Quiroga