quinta-feira, 20 de junho de 2013

LIÇÃO SOBRE DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO


Lição sobre a água

Antonio Gedeão



Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com exceções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.



Com base neste texto, faça outro (poesia ou prosa) em que haja a definição de um objeto  e depois a utilização deste objeto com outra finalidade. Aqui a definição da água como se fosse um verbete  foi feita para falar da morte de Ofélia por afogamento. Ou seja, o literário é o dizer indireto, deslocado, de forma que surpreenda o leitor.




Marcus Vinicius Quiroga

domingo, 16 de junho de 2013

A IDENTIFICAÇÃO COM O TEXTO



                                                        GUILHERME ARANTES


OLHAR ESTRANGEIRO

Vejo as pessoas com o olhar mais estrangeiro 
O olhar do estranhamento que não tem nada a perder
 
Vou sentar no meio-fio da rua, contramão da multidão
 
No frenesi dos carros sem sentido pra seguir
 
Não sou daqui
 
Que não tem pra onde fugir, oh yeah, baby!
 
Sem esconderijo pra sumir
 

Relógios galopando um tempo inútil que acelera
 
Quanto mais nos desespera está mais longe de acertar
 
A engrenagem não encaixa, e a cidade é uma cilada
 
Tem de tudo e não tem nada em que eu pudesse me achar
 
Não sou daqui
 
Que não tem pra onde fugir, oh yeah, baby!
 
Sem esconderijo pra sumir
 

Eu vejo um menino
 
Sujo na esquina
 
Ele podia ser meu filho
 
Com seu olhar perdido
 
O mesmo que eu tinha
 
E a poluição me faz chorar

ONDE ESTAVA VOCÊ

Só o tempo em nós respondeu 
Em que se transformou 
A amizade que uma vez existiu 
Quem foi leal, quem ficou e o que se abandonou 

Onde estava você 
Quando mais eu precisei 
Do amigo pra lutar 
Em tempos de guerra e paz 

Onde andava você 
Quando o mundo me esqueceu 
Na areia do deserto e não te achei jamais 

Tanto trabalho que deu 
Reconstruir o chão 
O universo desabou, um furacão 
Pedra por pedra, valeu 
O aprendizado é assim 

Onde estava você 
Quando mais eu precisei 
Do amigo pra lutar 
Em tempos de guerra e paz 

Onde andava você 
Quando o mundo me esqueceu 
Na areia do deserto e não te achei jamais 

Quando somos jovens 
Tantos sonhos são pra durar 
Muitos são os álbuns 
De memórias pra guardar 

Só o tempo em nós respondeu 
Em que se transformou 
A amizade que uma vez existiu 
Quem foi leal, quem ficou 
E o que se abandonou 

Onde estava você 
Quando mais eu precisei 
Do amigo pra lutar 
Em tempos de guerra e paz 

Onde andava você 
Quando o mundo me esqueceu 
Na areia do deserto e não te achei jamais 

Quando somos jovens 
Tantos sonhos são pra durar 
Muitos são os álbuns 
De memórias pra guardar 

       
            Em homenagem à família Dinaldo Medeiros, vejamos estas duas letras do último Cd de Guilherme Arantes para tratarmos da empatia. A primeira retrata uma situação frequente em cidades grandes: o sentimento de estrangeiro do homem, quando olha para tudo ao redor. No caso, a ideia da letra surgiu em São Paulo, que é de fato uma metrópole com miséria e poluição.
        A ambientação da rua já é revelada pelos versos iniciais (“Vou sentar no meio-fio da rua, contramão da multidão/ No frenesi dos carros sem sentido pra seguir “, mas é na última estrofe que surge a cena que nos interessa. Aqui encontramos o menino sujo na esquina com olhar perdido, como milhares de menores abandonados nas grandes capitais do mundo. Só que este é diferente, pois “ele podia ser meu filho”.  Agora, sim, se dá a empatia. Como se a câmara do olhar trouxesse a visão da lente panorâmica para o close. Ou seja, o menino de rua anônimo e distante, ao lado de tantos outros, individualiza-se a ponto de ser visto como o filho de quem o vê.
        Ora, neste momento, se você (leitor/ouvinte) é pai (ou tem o sentimento paternal) passa a pensar também nos meninos de rua como seus possíveis filhos. A identificação se dá com o “eu” poético: ele é pai e, nesta cena, olha para o mundo como pai. E o receptor que é pai provavelmente vai sentir melhor o verso e gostar mais da canção.  Eis, portanto,  o verso-chave da letra: “Ele podia ser meu filho”. E a reação emotiva, diante da infância pobre e abandonada, é o choro, que, na megalópole, poderia ter como causa a poluição.
         No verso final, dá-se a superposição do problema ambiental e socioeconômico (a poluição) com o sentimento particular de um homem em face de outro problema também socioeconômico, agora igualmente particularizado (meu filho). Como se a poluição fosse um frágil disfarce para a verdadeira causa do choro.        

         Já na segunda letra, a identificação ocorre com ouvintes já maduros, pois os versos lamentam as amizades que se perderam no tempo. Ao dizer “Quando somos jovens/tantos sonhos são para durar/Muitos só nos álbuns/de memórias pra guardar...”,  o eu poético assume a distância em relação a sua juventude, que agora existe em álbuns e na memória.
         Os temas da passagem do tempo e das relações afetivas dizem mais respeito a quem tem mais idade e, portanto, já viveu o desfazer destas relações e refletiu sobre os efeitos das mudanças que acontecem na vida.
           A inevitável empatia se dá, pois aqueles que já não são jovens vão se lembrar dos amigos que ficaram para trás, dos que desertaram dos sonhos da juventude, dos que abriram mão da lealdade e dos que se transformaram em pessoas muito diferentes. No refrão “Onde estava/andava você?” se encontra a síntese do sentimento nostálgico que perpassa toda a canção.
      Como exercício, que tal fazermos textos em que haja algum tipo de empatia, como nos exemplos acima?



                    Marcus Vinicius Quiroga            

quinta-feira, 13 de junho de 2013

LITERATURA E REALIDADE





Uma das maneiras de fazer o leitor participar da obra é dizer que algo aconteceu e suscitar dúvida sobre se realmente ocorreu ou não. Ao forjar dados, o ficcionista mostra que a realidade também é uma criação. De fato, nem mesmo o historiador é objetivo, sempre cultiva algum grau de subjetividade. Com o advento de novas tecnologias para registrar a realidade, como a máquina fotográfica, o narrador ficcional se obrigou a ser mais detalhista e, assim, passar mais a sensação do real. Ora, sabemos que tampouco a fotografia corresponde à verdade, pois também é arte, vista do jeito que se quer, sem falar que, no fundo, o narrador jamais será verdadeiro.


Godofredo de Oliveira Neto

domingo, 9 de junho de 2013

UM POUCO MAIS DE DRUMMOND


Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.



    A adversidade tão frequente em Drummond se apresenta na última estrofe em uma reunião de contrários, que seria semanticamente um paradoxo. Só que no caso este “paradoxo” não cria um choque, pois o leitor entende de imediato que o amanhecer na guerra não traz o sentido de esperança normalmente associado a esta palavra.

    As imagens de manhã e noite são corriqueiras na literatura, no entanto o desfecho do poema causa efeito pela identificação de manhã com noite, graças ao significado negativo de noite e formalmente pela ausência do verbo e pelo uso enfático da palavra (mais noite que a noite), como se a primeira noite fosse um adjetivo que qualificasse a segunda noite, que é substantivo.   





Marcus Vinicius Quiroga

sábado, 1 de junho de 2013





POEMA DO JORNAL

O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A pena escreve.
A polícia dissolve o meeting.


Vem da sala de linotipos a doce música mecânica





    Eis um bom exemplo para nos lembrarmos das linguagens conotativa e denotativa, dizendo que, a princípio, a primeira se identifica com a linguagem poética. O título nos remete para o jornal e seu discurso objetivo, voltado para a informação, portanto, trata-se de um texto que se deseja compreensível e, de preferência, da mesma forma por todos. Já a poesia nem sempre se quer compreendida e,se o for, não o será de formas diferentes por diferentes leitores.

     Na primeira estrofe, há quatro versos que correspondem a manchetes de primeira página. Com exceção da conjunção “e”, não há conetivos. Os versos se sucedem curtos e informativos. Só no último verso aparece a metáfora “a doce música mecânica”, com sutil oposição entre doce e mecânica.Aqui temos a “intervenção poética” do autor em um texto basicamente denotativo.

    Queremos mostrar com isto que às vezes basta uma metáfora (mudança de sentido, pois linotipos não produzem música) para criarmos um poema.     


                    Marcus Vinicius Quiroga