Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
mais noite que a noite.
A adversidade tão frequente em Drummond se apresenta na última estrofe em uma reunião de contrários, que seria semanticamente um paradoxo. Só que no caso este “paradoxo” não cria um choque, pois o leitor entende de imediato que o amanhecer na guerra não traz o sentido de esperança normalmente associado a esta palavra.
As imagens de manhã e noite são corriqueiras na literatura, no entanto o desfecho do poema causa efeito pela identificação de manhã com noite, graças ao significado negativo de noite e formalmente pela ausência do verbo e pelo uso enfático da palavra (mais noite que a noite), como se a primeira noite fosse um adjetivo que qualificasse a segunda noite, que é substantivo.
Marcus Vinicius Quiroga
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