domingo, 5 de maio de 2019









UMAS E OUTRAS




Se uma nunca tem sorriso
É pra melhor se reservar
E diz que espera o paraíso
E a hora de desabafar
A vida é feita de um rosário
Que custa tanto a se acabar
Por isso às vezes ela para
E senta um pouco pra chorar
Que dia! Nossa, pra que tanta conta
Já perdi a conta de tanto rezar
Se a outra não tem paraíso
Não dá muita importância, não
Pois já forjou o seu sorriso
E fez do mesmo profissão
A vida é sempre aquela dança
Onde não se escolhe o par
Por isso às vezes ela cansa
E senta um pouco pra chorar
Que dia! Puxa, que vida danada
Tem tanta calçada pra se caminhar
Mas toda santa madrugada
Quando uma já sonhou com Deus
E a outra, triste enamorada
Coitada, já deitou com os seus
O acaso faz com que essas duas
Que a sorte sempre separou
Se cruzem pela mesma rua
Olhando-se com a mesma dor
Que dia! Nossa, pra que tanta conta
Já perdi a conta de tanto rezar
Que dia! Puxa, que vida danada
Tem tanta calçada pra se caminhar
Que dia! Cruzes, que vida comprida
Pra que tanta vida pra gente desanimar



Aqui temos uma freira e uma prostituta colocacadsa lado a lado, com suas diferenças e semelhanças.
O que chama atenção é fato de a letra mostrar as semelhanças entre elas, contariando um senso comum. Pense também em um texto em que duas pessoas, aparentemente distantes, apresentem pontos de contato que as identifiquem.
   


sábado, 27 de abril de 2019





CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


EU, ETIQUETA

Em minha calça está grudado um nome 
que não é meu de batismo ou de cartório, 
um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produto 
que nunca experimentei 
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
de alguma coisa não provada 
por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
minha gravata e cinto e escova e pente, 
meu copo, minha xícara, 
minha toalha de banho e sabonete, 
meu isso, meu aquilo, 
desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
são mensagens, 
letras falantes, 
gritos visuais, 
ordens de uso, abuso, reincidência, 
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade, 
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É duro andar na moda, ainda que a moda 
seja negar minha identidade, 
trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
eu que antes era e me sabia 
tão diverso de outros, tão mim mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer língua 
(qualquer, principalmente). 
E nisto me comparo, tiro glória 
de minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
para anunciar, para vender 
em bares festas praias pérgulas piscinas, 
e bem à vista exibo esta etiqueta 
global no corpo que desiste 
de ser veste e sandália de uma essência 
tão viva, independente, 
que moda ou suborno algum a compromete. 
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher, 
minhas idiossincrasias tão pessoais, 
tão minhas que no rosto se espelhavam 
e cada gesto, cada olhar 
cada vinco da roupa 
sou gravado de forma universal, 
saio da estamparia, não de casa, 
da vitrine me tiram, recolocam, 
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros 
objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
de ser não eu, mas artigo industrial, 
peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é coisa. 
Eu sou a coisa, coisamente.


Décadas depois, o texto de Drummond está atualíssimo. Faça uma paródia, tendo como objeto a obsessão pelo celular e seu uso. 
 . 

quarta-feira, 24 de abril de 2019






UMA CANÇÃO

Minha terra não tem palmeiras…
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,
Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes…
Mas onde o instante de agora?

Mas onde a palavra “onde”?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!

Mário Quintana




O poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, foi o texto mais parodiado da literatura brasileira. Faça você também uma releitura da obra romântica, observando o tema do exílio, tão em voga nos dias de hoje,

quinta-feira, 18 de abril de 2019


Tecendo a Manhã
 (João Cabral)

 
1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 
  

    Este poema, um dos mais conhecidos de João Cabral, trata da solidariedade e nos lembra do provérbio "uma andorinha só não faz verão", que faz parte do repertório popular. Curiosamente, o texto tem um tema de fácil comunicação e numa estrofe (a segunda) de difícil leitura.
    Escolha outro provérbio como temática de seu poema, sem fazer alusão a ele de forma direta.  



segunda-feira, 15 de abril de 2019

POEMA PARA POETAS


                                                      Thais Guimarães






A POETISA
(para Hissa Hilal, poeta beduína)
Um dia não tive rosto
Em outra vida fui beduína
Não recebi moedas ao lavar a lâmpada
nenhuma paga que valha o óleo
queimado nas mãos
Um dia fui beduína aos 43 anos
e meus cabelos louros eram castanhos
com fios brancos sob o niqab negro
Porque também fui beduína
poemas foram queimados
divorciados de mim
debaixo das patas
dos cavalos
Na areia
minhas pegadas são réstias
que resistem
Do couro solado à imagem gasta
de uma boca nunca vista
uma língua vaza
pela fresta
Porque fui beduína
nascida com o dote
da palavra atribuída
à má sorte
Entre estacas provisórias
– escora
para cordas curtas
As letras escritas por minhas mãos
pojaram de uma cana fendida
o leite de pedra
de peitos nunca vistos
e alentaram palavras consoantes
num papel sobre os joelhos
enquanto homens bebiam chá
e riam
à sombra
das tendas de frisa
Beduína, agora levanto o véu
da alma
com a voz do vento
sem trégua
Um eco
centelha no deserto
– rasga a burka do medo
na fenda de um niqab negro
**
Thais Guimarães



Após a leitura deste belo poema, faça um em homenagem a outra poetisa.