domingo, 25 de setembro de 2011

O SIMBÓLICO

CORRIDA DE CEM METROS

Vejamos o mundo.
Exércitos, lugares onde se sofre,
sacrifícios da mãe pelos quatro filhos, o erudito de óculos a
examinar
o filme pornográfico,
o velho de passo lentíssimo com um casaco exagerado,
uma criança a troçar de outra mais fraca,
o casal a discutir por causa do ruído dos pés de um
e da sensibilidade do ouvido do outro,
e no meio de tantos factos e de tão diversas possibilidades,
oito homens com calças curtas e números nas costas
correm cem metros
- nem um centímetro a mais- e ganham ou perdem.
E uma vitória, por exemplo, pode levar alguém a curvar-se
e a chorar. E o assunto são cem metros de espaço no Mundo.
Pensa, por exemplo, no espaço de um país
ou no espaço da tua casa,
ou no espaço que percorres atrás da rapariga
que te largou a mão no meio da cidade;
porém nada mais há em alguns instantes, para esses homens,
além de: cem metros. Cem metros de espaço no planeta.
Vejamos, pois, o Mundo outra vez.
Como quem lê pela segunda vez um livro. Voltemos atrás.
Vejamos onde o homem perdeu a razão.
Em que momento.

Gonçalo M. Tavares





No texto acima, Gonçalo mostra que uma simples corrida de cem metros pode fazer com que homens chorem de felicidade pela vitória, enquanto o mundo se autodestrói em guerras e em outras tantas crueldades. Ora, como pode uma simples corrida de cem metros ser capaz de dar alegria ao homem, quando há tantos problemas sérios no mundo?
Estamos diante de um bom exemplo de como o simbólico atua sobre nós. A corrida é de fato insignificante, mas ela foi investida de um valor simbólico que a transforma em um objetivo de vida, cuja conquista, ainda que ridícula, faz com que o vencedor se sinta um herói e pense que todos têm admiração por seu, supostamente grande, feito.
Repito: este é só um exemplo. Pensemos no simbólico de maneira mais geral e ele sem dúvida, está presente na criação literária e na chamada vida literária. Esta, sim, é, desafortunadamente, repleta de
valores simbólicos que interferem na criação e na crítica.
Quais são os “cem metros” que nos cegam? Um escritor precisa se ver livre destes desvios. As matanças no Iraque ou no Afeganistão, por exemplo, são maiores que as técnicas narrativas modernosas, mas quem se importa?

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A POESIA É RELAÇÃO!

A POEIRA DO TEMPO

Sentada na casa corto as unhas
dezoito andares acima de Jerusalém.
Levanto o olhar
a cúpula cintila em ouro e sol
a clara muralha defende o que está salvo.
Todos os dias
as minhas unhas crescem
E eu as corto sem recolher aparas.
Mais lento parece o alterar-se
das muralhas.
No entanto
todos os dias a história recolhe
a poeira
de suas pedras


Marina Colasanti


COM DANTE

Neste Castelo de Gargonza
Dante esteve um pouco antes de mim.

Escapava de inimigos (os gibelinos).
Pisava nestas pedras
ouvia o mesmo sino que na torre ainda há pouco batia.
Isso foi há oito séculos.

O que não é nada
diante das pedras
- e da poesia.


Affonso Romano de Sant’anna


Que o casal me perdoe, caso incorra em equívoco, ao escolher estes dois textos para mostrar a influência/confluência entre dois escritores, que, por acaso, são marido e mulher. Relendo os poemas, penso se não foi a palavra “pedra” que fez com que eu me lembrasse em particular destes dois textos. Talvez. Mas acho que há outras coisas ambos são curtos, com versos livres e quase todos brancos; ambos têm referências externas (Jerusalém e castelo em Gargonza); ambos têm dois momentos (Em “No entanto“ e em “o que é nada” dá-se a “reviravolta” poética; ambos se referem ao tempo (todos os dias. ainda há pouco, há oito séculos) e, especialmente, ao tempo histórico; ambos unem o abstrato com o concreto (a abstrata história recolhe a concreta poeira; a noção abstrata de oito séculos diante das pedras).
Difere o poema de Affonso porque, em seu final, confronta o tempo de oito séculos com a abstrata e/ou concreta (no bom sentido, é claro) poesia.
Ambos mostram como as coisas são relativas, mas, no segundo texto, o relativismo se acentua porque a comparação se dá também com a poesia (a história da poesia? a série literária? a poesia que existe em tudo e não só nos poemas?...) E, se lermos a poeira do 1º texto também como metafórica, ela se aproximará da poesia e deixará de ser concreta. Agora me pergunto se não seria a poesia uma espécie de poeira (e quase um anagrama) que se fixa no branco das páginas e que se espalha pelo ar dos séculos e das histórias.


Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

À MANEIRA DE

Manuel Bandeira escreveu alguns poemas à maneira de. E este é um exercício. Não devemos ter medo da influência de outros autores, nem de homenageá-los como Bandeira o fez. Picasso, por exemplo, como era comum na pintura, copiou antes de pintar. E se torrou Picasso, é bom lembrar.
Como exercício, aqui vão alguns pequenos textos. Experimentem o mesmo. Escolham alguns autores e façam poemas à maneira de. Não se trata de plágio, apropriação, sample; apenas de um exercício que exige, sim, a fundamental leitura.


À MANEIRA DE QUINTANA

I

Uma canção não se adia
O que se adia
torna-se silêncio.


II

Às vezes, diante de adversidades,nos perguntamos o que fizemos para estarmos naquela situação,quando deveríamos perguntar o que não fizemos.


III

Mandou pôr abaixo
todas as paredes de seu corpo.
Agora, que já era um amplo loft,
deu pela ausência de janelas.


PARÓDIA DE QUINTANA

Há pessoas que passam a vida plantando sementes de pêssego, e, quando o pessegueiro cresce, dizem surpresas: “Mas isto não é um trator!”



À MANEIRA DE LEMINSKI

Das duas uma:
ou você entra no espelho
e sai de lá tonta
ou inventa uma versão
e nunca mais se encontra



À MANEIRA DE G. TAVARES

Foi morar em um reino
cujos arquitetos não sabiam construir pontes.
Tinha, então, uma boa desculpa
para não sair do lugar.


DRUMMONDIANA

A porta trancada
A janela fechada
A luz apagada
A noite arrumada

Quantas rimas e nenhuma solução!



Marcus Vinicius Quiroga

segunda-feira, 12 de setembro de 2011





FEBRUARY

(Dar Willians)



I threw your keys in the water, I looked back,
Theyd frozen halfway down in the ice
They froze up so quickly, the keys and their owners,
Even after the anger, it all turned silent, and
The everyday turned solitary,
So we came to february

First we forgot where wed planted those bulbs last year,
Then we forgot that wed planted at all,
Then we forgot what plants are altogether,
And I blamed you for my freezing and forgetting and
The nights were long and cold and scary,
Can we live through february?

You know I think christmas was a long red glare,
Shot up like a warning, we gave presents without cards,
And then the snow,
And then the snow came, we were always out shoveling,
And wed drop to sleep exhausted,
Then wed wake up, and it’s snowing

And february was so long that it lasted into march
And found us walking a path alone together
You stopped and pointed and you said, ’thats a crocus,’
And I said, ’whats a crocus? ’ and you said, ’its a flower,’
I tried to remember, but I said, ’whats a flower? ’
You said, ’i still love you’

The leaves were turning as we drove to the hardware store,
My new lover made me keys to the house,
And when we got home, well we just started chopping wood,
Because you never know how next year will be,
And well gather all our arms can carry,
I have lost to february







Escutando a canção de Dar Willians, lembrei-me de um tema de que tenho falado com certa frequência nas oficinas: o uso criativo ou expressivo das rimas. Por gostar delas, lamento quem as usa de forma burocrática ou quem as ignore, por vê-las como característica de poema passadista, e sempre chamo a atenção de que elas podem colaborar para a composição do poema, ou, se gastas e previsíveis, podem também enfraquecer o texto.
Fazer poemas com rima ou sem rima é fácil, fazê-los com rimas que tenham uma função verdadeiramente poética é que são elas. Se eu rimar, só por rimar, não tenho mérito; se eu simplesmente não rimar, fugindo ao desafio da criatividade, também não tenho méritos.
Hélcio Martins fez um excelente estudo sobre as rimas em Drummond, que só tem 14% dos seus poemas com rima, o que faz com que o uso tão parcimonioso da rima pelo poeta seja mais significativo.
Sendo February uma letra de música, não um poema, há uma espécie de refrão, em que o segundo verso usa a palavra que dá título à canção. Neste caso, o verso anterior apresenta uma rima com february. Tais rimas nos finais das estrofes fazem com que os versos sejam melhor memorizados e, portanto, valorizam o conteúdo destes finais. Ou seja, estas rimas têm um efeito poético e uma razão de ser. Atentemos para muitos poemas que só apresentam rimas no final da estrofe ou do poema.


Para entendermos esta letra e suas imagens, temos que lembrar que ela se refere às estações no hemisfério norte. Logo February fala sobre o inverno. Melhor, sobre o período mais rigoroso do inverno.
O mês aqui adquire a conotação de frio, gelo e neve, palavras que, na letra, passam da visualização concreta para a significação abstrata. Aliás. observemos no trecho abaixo como as palavras destacadas podem, depois de lidas denotativamente, serem lidas conotativamente, enriquecendo os sentidos latentes na letra.


My new lover made me keys to the house,
And when we got home, well we just started chopping wood,
Because you never know how next year will be,
And well gather all our arms can carry,
I have lost to february