CORRIDA DE CEM METROS
Vejamos o mundo.
Exércitos, lugares onde se sofre,
sacrifícios da mãe pelos quatro filhos, o erudito de óculos a
examinar
o filme pornográfico,
o velho de passo lentíssimo com um casaco exagerado,
uma criança a troçar de outra mais fraca,
o casal a discutir por causa do ruído dos pés de um
e da sensibilidade do ouvido do outro,
e no meio de tantos factos e de tão diversas possibilidades,
oito homens com calças curtas e números nas costas
correm cem metros
- nem um centímetro a mais- e ganham ou perdem.
E uma vitória, por exemplo, pode levar alguém a curvar-se
e a chorar. E o assunto são cem metros de espaço no Mundo.
Pensa, por exemplo, no espaço de um país
ou no espaço da tua casa,
ou no espaço que percorres atrás da rapariga
que te largou a mão no meio da cidade;
porém nada mais há em alguns instantes, para esses homens,
além de: cem metros. Cem metros de espaço no planeta.
Vejamos, pois, o Mundo outra vez.
Como quem lê pela segunda vez um livro. Voltemos atrás.
Vejamos onde o homem perdeu a razão.
Em que momento.
Gonçalo M. Tavares
No texto acima, Gonçalo mostra que uma simples corrida de cem metros pode fazer com que homens chorem de felicidade pela vitória, enquanto o mundo se autodestrói em guerras e em outras tantas crueldades. Ora, como pode uma simples corrida de cem metros ser capaz de dar alegria ao homem, quando há tantos problemas sérios no mundo?
Estamos diante de um bom exemplo de como o simbólico atua sobre nós. A corrida é de fato insignificante, mas ela foi investida de um valor simbólico que a transforma em um objetivo de vida, cuja conquista, ainda que ridícula, faz com que o vencedor se sinta um herói e pense que todos têm admiração por seu, supostamente grande, feito.
Repito: este é só um exemplo. Pensemos no simbólico de maneira mais geral e ele sem dúvida, está presente na criação literária e na chamada vida literária. Esta, sim, é, desafortunadamente, repleta de
valores simbólicos que interferem na criação e na crítica.
Quais são os “cem metros” que nos cegam? Um escritor precisa se ver livre destes desvios. As matanças no Iraque ou no Afeganistão, por exemplo, são maiores que as técnicas narrativas modernosas, mas quem se importa?
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