sexta-feira, 7 de outubro de 2011

LIÇÃO DE POESIA

LIÇÃO SOBRE A ÁGUA (Antônio Gedeão)

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com exceções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.


Reparemos como um poema surge de uma definição denotativa que tem, a princípio, apenas algumas rimas que indicam a intenção de ser poema. E, diga-se de passagem, não são rimas atraentes, mas corriqueiras. Súbito, no verso “Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão”, dá-se a reviravolta, e da denotação passamos para a conotação, com a instalação do poético.
O tema da morte é apresentado de forma extremamente original e não piegas ou sentimentaloide. De uma aparen-temente simples descrição, a da água, o texto, de forma irônica e sutil, refere-se a Ofélia de Shakeaspeare; da página de um dicionário para a tragédia teatral.
Acreditamos que, se no lugar de Ofélia fosse um nome qualquer, o poema perderia em parte o seu propósito, mas, mesmo assim, causaria efeito, pois falaria da morte através da definição da água. Sem criar suspense, o poeta só revela o verdadeiro objeto de seu texto nos quatro versos finais. Isto nos lembra que faz parte da literatura falar de uma coisa para querer dizer outra.

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