quarta-feira, 17 de julho de 2013

AFFONSO E SEUS CÃES




Affonso Romano de Sant’Anna

PARA TIGRÃO

Passo a mão no pelo deste cão
deitado no tapete.
Essa cabeça grande, quente, magnífica.
Passo a mão e ele aceita
Meu carinho humano, animal.
No entanto, morreremos, os dois.
Nos tocamos ternamente.
Neste instante
- não morreremos jamais


RITUAL DOMÉSTICO


Toda noite
acendo algumas velas na sala
enquanto minha mulher prepara o jantar.
Somos nós dois
e essa cachorrinha meiga
com seu estoque inesgotável de afeto.
Comemos, conversamos
(as velas em torno)
elogio a comida surpreendente
que ela sempre faz.

Falamos do mundo. De nós mesmos.
Volta e meia, ela diz : " Vou te dizer uma coisa
que só posso dizer para você"
e faz uma revelação, como se abrisse um poema.

Calmamente o jantar chega ao fim.
Vou tirando as louças
e começo a apagar as velas uma a uma
enquanto soam os últimos acordes barrocos.

Menos um dia, uma noite
- a mais.

Junto à porta, a cachorrinha
ora deita-se estirada
ora late para o nada.


RADAR

Como esses radares estatelados para o cosmos
ergo na montanha
meu olhos para o espanto.
Um vaga-lume sabe melhor sua direção.
Vasculho, no entanto, alguns sinais
antes que a nave de meu corpo
se dilua no horizonte.

Esta semana descobriram
um berço de galáxias
sabem de que é feito o desastroso núcleo
de um cometa
também alteraram o DNA de uma bactéria
que pode viver noutro planeta.

esta cachorrinha deitada
no entardecer comigo nesta grama
olfata o mundo
mas diferente de mim
só se propõe problemas
que pode resolver.


1 – Em Para Tigrão, há o paradoxo “morreremos x morreremos jamais”. A relação afetiva entre homem e cão transforma o momento passageiro em algo eterno, daí não morrerem naquele instante.
     Faça um texto em que haja no final uma (às vezes aparente ) contradição de ideias.

2 – Em Ritual doméstico, outro paradoxo em “Menos um dia, uma noite - a mais”. Faça um texto em que haja a descrição de uma cena, como a deste jantar, na qual subitamente se instaura o poético, graças ao olhar que vê no menos o mais.

3 – Em Radar, há várias  comparações e diferenças, como entre radar
e vaga-lume. A última coloca lado a lado o homem e um cachorrinha (supostamente menos inteligente), para, através do confronto, revelar a ingenuidade e/ou pretensão do homem.
     Escreva um texto que se valha de uma comparação para valorizar uma afirmação.   



Marcus Vinicius Quiroga


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