segunda-feira, 28 de novembro de 2011

POEMAS SUJOS I

A mão suja
Carlos Drummond de Andrade

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.
E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo da casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
mão limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

E era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
– o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil, reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!

Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura – transparente –
colar-se a meu braço.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

TO LEAVE, TO LIVE

She's Leaving Home

Wednesday morning at five o´clock as the day begins
Silently closing her bedroom door
Leaving the note that she hoped would say more
She goes downstairs to the kitchen
Clutching her handkerchief
Quietly turning the backdoor key
Stepping outside she is free
She
We gave her most of our lives
Is leaving
Sacrified most of our lives
Home
We gave her everything money could buy
She´s leaving home after living alone
For so many years
Father snores as his wife gets into
Her dressing gown
Picks up the letter that´s lying there
Standing alone at the top of the stairs
She breaks down and cries to her husband
"daddy, our baby is gone"
Why would she treat us so thoughtlessly?
How could she do this to me?
She
We never thought of ourselves
Is leaving
Never a thought of ourselves
Home
We struggled hard all our lives to get by
She´s leaving home after living alone
For so many years
Friday morning at nine o´clock she is far away
Waiting to keep the appointment she made
Meeting a man from the motor trade
She
What did we do that was wrong?
Is having
We didn´t know it was wrong
Fun
Fun is the one thing that money can´t buy
Something inside that was always denied
For so many years
She´s leaving home, bye, bye

Lennon / McCartney






Ouvindo Father and son, de Cat Stevens, lembrei-me de She is leaving home, por motivos óbvios. Saio de um diálogo frustrado entre pai e filho para o texto surpreso de um casal diante da partida da filha. Em ambos, a distância de gerações, a incompreensão, a cegueira por parte dos mais velhos que não conseguem se levantar da poltrona de sua época e subir no estribo do bonde da história.
Entre parênteses temos as falas do casal que não entende o que está acontecendo, pois jamais prestou atenção ao que existia a seu redor. Quando de repente veem que a filha é uma estranha, dizem a clássica frase “What did we do that was wrong?”.
São duas letras sobre a falta de comunicação ou sobre o egoísmo
de pais que não enxergam os filhos. Claro que Cat, John e Paul eram jovens quando fizeram as letras e estavam ao lado dos filhos, em oposição aos pais. Mas quem, com mais de trinta, ousaria contrariar as letras?
Notemos o elemento dual presente em ambas: pai e filho, pais e filha, duas gerações, imobilidade e movimento etc...Em ambas também a partida dos filhos em busca de sua história, de sua identidade. Imagino que seriam interessantes composições que retomassem o tema, como se fossem Father and son II ou She’s leaving home II, com o discurso atual dos mesmos personagens. Que balanço fariam 40 anos depois pais e filhos? Como todos nós somos ao mesmo tempo nossos pais e nossos filhos, que balanço fazemos de nossas partidas e do que ficou para trás?
Quem se esqueceu em algum porto, não ouviu as palavras
finais da canção de Stevens:”Now there's a way and I know/
That i have to go away/ I know I have to go”.


Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

DE OBRAS LITERÁRIAS E/OU NÃO 2

ANALOGIAS A RESPEITO DE CASA

O engenheiro
antes de projetar a ponte
tem que crer na existência da outra margem


Inútil
reformar mais uma vez a lateral torta
do quinto andar
Melhor seria pensar
sobre as fundações


Ao acordar
sempre abria a janela do quarto
Mas outras janelas
permaneciam fechadas
durante todo o diálogo


Como costumava se atirar pela janela
mudou-se para um rés-do-chão


Carregava a casa nas costas
e se sentia sempre do lado de fora


Em casa erguida só por uma pessoa
mora uma pessoa só


Com uma personagem de O Cortiço
de Aluísio de Azevedo
que jogava baldes de água no assoalho
obstinadamente
aprendi a relação entre concreto e abstrato


As portas realmente surdas
não aceitam chaves


Os engenheiros
que fazem a planta
depois da obra concluída
têm cursos de ideologia

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

DE OBRAS LITERÁRIAS E/OU NÃO

Em um período de obras, mais não-literárias do que literárias, veio-me a lembrança
um poema antigo, circunstancial, feito como consequência de outro longo tempo dedicado às obras de uma casa. Muitas analogias são possíveis sobre a construção, a reforma ou a descontrução de uma casa e de um homem. E as analogias servem como material (sem trocadilho) para reflexão.


A CASA E O HOMEM


NÃO, COM O HOMEM É DIFERENTE.
NÃO HÁ LICENÇA PARA REFORMA,
APROVAÇÃO DA PREFEITURA,
PLANTA-BAIXA, MESTRE DE OBRA.
COM O HOMEM NÃO É TÃO SIMPLES
QUANTO PÔR UMA PAREDE ABAIXO,
FECHAR UMA JANELA LATERAL,
OU VISTORIAR A INSTALAÇÃO ELÉTRICA.
MAIS DIFÍCIL AINDA QUANDO SE TRATA
DE UMA DEMOLIÇÃO POR INTEIRO:
NÃO HÁ AZULEJOS RAROS,
JANELAS COLONIAIS REAPROVEITÁVEIS.
COM O HOMEM NÃO HÁ AO MENOS
A PERSPECTIVA DO TERRENO
PARA UM PRÉDIO DE MUITOS ANDARES.
HÁ NA DEMOLIÇÃO SÓ A SUPERFÍCIE,
UM LIMIAR EM QUE NÃO SE DISTINGUE
O QUE É A TERRA DO ENTULHO
DA TERRA DA SEPULTURA.

UM HOMEM NÃO É UM ENDEREÇO
DO QUAL SE TENHA LEMBRANÇA.
QUANDO ELE DESAPARECE,
SUA AUSÊNCIA É TÃO BRANCA,
SEM POEIRA, SEM VESTÍGIO
SEM OS HEMATOMAS DA MARRETA.
UM HOMEM NÃO É RECOLHIDO
POR PÁS GIGANTES DE TRATORES
E DEPOIS LEVADO AO DEPÓSITO.
AO DORES DE UM HOMEM
NÃO SÃO VISTAS NO SEU PÓ.
TAMPOUCO ELE SERVE DE ATERRO,
MENOS AINDA DE ADUBO.
SE A DEMOLIÇÃO É POR INTEIRO,
O HOMEM VIRA SONHO INTERRUPTO.


Marcus Vinciius Quiroga