Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim
Perdoem por tantos
perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim
Perdoem a falta de
folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim
E quando passarem a
limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim
Quando lavarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim
Quando brotarem as
flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
Se hoje tua mão não tem manga ou goiaba
Se a nossa pelada se foi com o dia
Te peço desculpas, me abraça meu filho
Perdoa essa melancolia
Se hoje você não
estranha a crueza
Dos lagos sem peixe da rua vazia
Te olho sem jeito, me abraça meu filho
Não sei se eu tentei tanto quanto eu podia
Se hoje teus olhos
vislumbram com medo
Você já não vê e eu juro que havia
Te afago o cabelo, me abraça meu filho
Perdoa essa minha agonia
Se deixo você no absurdo
planeta
Sem pique-bandeira e pelada vadia
Fujo do teu olho, me abraça meu filho
Onde andam seus pais
Se cansaram da estrada?
Hippies, ingênuos e nus,
A vocês não dizem nada?
O que pensam seus pais
Da ilusão destroçada?
Velhos sonhos azuis
Derramados na calçada
Ainda cantam velhos
blues
Sobre seres com asas?
Ou perderam na luz
O caminho de casa?
O que sentem seus pais
Quando alguém acha graça
Dos gentis samurais
Artesões pobres na praça?
O que dói nos seus pais
É a falta de esperança?
Ou seu olho que vai
Onde o deles não alcança?
Aqui temos
três letras que se referem a filhos e portanto a gera-ções. No caso, às
gerações de 60, 70, 80, 90, através dos pais ou dos filhos. Por que, então, não
fazer um diálogo entre estas gerações tão próximas e às vezes tão distantes,
com letras que representem seus valores?
Nas três obras, notamos o desencanto, a perda, com o passar do tempo, de
ideais e ilusões. Nas duas primeiras, a coincidência do pe-dido de perdão e o
reconhecimento de que algo diferente poderia ter sido feito. Este verso de
Montenegro resume tal sentimento: “Não
sei se eu tentei tanto quanto eu podia”.
De geração para geração, vão sobrando
dívidas e sonhos não realizados e, ao mesmo tempo, vamos herdando os caminhos e
descaminhos. No século XX, as décadas de 20 e 60 foram as mais marcantes, as
que simbolizam as maiores mudanças, independente de preferências subjetivas.
Como o movimento hippie foi o último
momento romântico da História (ainda haverá outros?), sucedido, mas não de
imediato, pelo fabricado estilo yuppie de não ser, deu-se o aburguesamento dos
jovens de todas as classes. Como diria (ele não disse) Joãozinho Trinta, pobre
gosta de tênis Nike.
A tecnologia dos 80 para cá criou botões
e mouses para as mãos de todos e acorrentou-as nas telas e nos aparelhos. O
mundo passou a ser o da “última geração”, sem trocadilho.
O verso “os dias eram assim”, da Vitor
Martins, são usados como desculpa ou explicação. Mas, se pensarmos bem, todos
os dias de todas as épocas são “assim”. Vá lá que seja: há tempos em que os
dias são mais “assim” do que em outros.
Lamentamos o verso “perdoem a falta de
escolhas”, da mesma canção, pois sempre teremos as escolhas e as
circunstâncias. Acreditamos, portanto, que sempre há escolhas e dizemos esta
frase com o propósito da ambiguidade.
De falta em falta, vamos para a terceira letra
e os versos “O que dói nos seus pais/ é a falta de esperança?”. Sim, a falta de
esperança ou a falta do objeto de
esperança é marca de gerações.
Ou talvez seja apenas o que nosso olho não
alcança.
Marcus Vinicius Quiroga