segunda-feira, 2 de julho de 2012


     MEIA LEITURA
                                              Sylvia Ripper



   A palavra destrabalhada
que sai alheia, erma dos olhos
quem sabe onde restará acabada
quem sabe dos seus desalinhos?
 
E se soubéssemos aonde iríamos?
não escrever o verso terminado?
ou temer torná-lo letra
torná-lo carne, pele no papel
para ser olhado, mordido
mal lido?


Ou só visto nas entrelinhas
ou só degustado nas entrevozes
e entreouvidos mal dito
este é um verso desmerecido


seria melhor calar sua fronte
e encarcerá-lo nos meandros
das mãos indevidas


ersos, versos,
melhor não escrevê-los
mas se não os fizermos,
se não dermos suas letras,


como vivemos
nós, os incompletos?









         Se rasparmos as duas últimas estrofes, como em um palimpses--to, encontraremos a referência a versos de um poema simples de Vinicius de Morais, consagrado certamente pela temática da paterni-dade. São eles:


“Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?”



         A intertextualidade, que já abordamos outras vezes, é uma das características da poesia nas últimas décadas do século XX e ainda em vigência. No caso temos uma intertextualidade implícita, pois o reaproveitamento dos versos de Vinicius não é evidenciado.   
         O poema, é claro, não é avaliado por esta ou aquela carac-terística, logo ser intertextual não é mérito ou demérito, mas uma forma de identificação. De qualquer modo, isto nos lembra de que a autora tem leituras (não só meias) e de que a literatura não nasce do nada. Há sempre uma relação com a história literária e com o pano de fundo da contemporaneidade.
      Na terceira estrofe, notemos o neologismo “entrevozes” que surge pelo contágio de entrelinhas e entreouvidos. A criação de uma palavra nova também é um exemplo do desvio poético, princi-palmente quando ela introduz nova significação, não sendo apenas um neologismo pelo neologismo. Já na primeira estrofe, temos o “destrabalhada”, que nos surpreende por inverter o desejado por todo escritor: trabalhar a palavra, reescrever o texto, cortar o excesso... Neste primeiro neolo-gismo, feito graças ao uso do prefixo de negação “des”, vemos também a concordância com a palavra “desalinho”, um pouco mais adiante.
      A palavra buscada, seja pela reutilização da palavra alheia
ou pelo fabrico da palavra nova, é sempre o risco do sentido unívoco, equívoco ou plurívoco. Mas homens e poetas, estes incompletos, não têm alternativa. 
                   
                        Marcus Vinicius Quiroga 

Um comentário:

  1. O poema é lindo!

    E os comentários enaltecem e aclaram sua delicada e trabalhada composição. Parabéns a ambos.

    Carlos Pedala

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