quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

ESPECULAÇÕES EM TORNO DO OUTRO MESMO




Eu e o outro.
Então, quem sou?
Eu, o outro?

Dúvida e imprecisão.
O outro está longe
não pode ser eu.

O acesso ao outro
é esforço inútil
pois que o trago dentro.

O outro não é alguém
em quem vou me encarnar.
Já está dentro de mim.

Olha com meus olhos
mastiga com meus dentes.
Logo, não usa dentadura.

Caminha com meus pés.
Acorda com fome e toma
café com leite desnatado.

O outro vai ocupando o lugar
do meu lugar, e eu, escapando
sem querer, piso nos seus passos.

O outro me ocupa e me provoca.
Só me resta saber se ao morrer
quem vai: eu, ou ele, o outro.


Dirce de Assis Cavalcanti



Ainda aproveitando o instigante As linhas do vento da poeta e contista Dirce de Assis Cavalcanti, hoje selecionamos um texto que fala de uma questão recorrente na literatura: o outro, o duplo. Lembramos que a poucas postagens, vimos o último livro de Ferreira Gullar, no qual o duplo não só dá título a um poema, mas também aparece vários vezes como tema e até na estrutura das composições, em sua maioria duais.
O outro aqui não é um objeto sobre o qual o eu poético se debruce para especulações, pois está dentro. O outro é o próprio sujeito. E, se nos permitirem o jogo, diríamos que se trata de o “outro poético”, e que se identifica com o eu do poema, ao fazer as mesmas ações.Mas não de forma especular ou mimética, posto que não está do outro lado, e , sim, porque usa os mesmos dentes, os mesmos pés, as mesmas mãos. O outro se encontra latente no eu e às vezes se manifesta. Neste momento como diferençar este daquele?
Não importa achar uma resposta, até porque não nos parece possível, mas reconhecer a duplicidade, a alteridade. E ainda que haja algum conflito, o embate não é frontal. O outro vai ocupando aos poucos, como o gerúndio sugere, o eu, que, tentando escapar, pisa em seus passos. Ou nos próprios passos?
Não fugimos do outro que em nós habita, nem nos descartamos dele, uma vez que ele faz parte de nós e morrerá conosco. A menos que nas mortes simbólicas, e às vezes não menos difíceis, este alter ego nos substitua, também simbolicamente, e morra em nosso lugar.
Quando o outro parte é para dar lugar ao eu que permanece, renovando-se, na incessante busca da identidade, esta movediça.


Marcus Vinicius Quiroga

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