quinta-feira, 29 de março de 2012

ALEGRIA, ALEGRIA


ALEGRIA, ALEGRIA
Caetano Veloso


Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot...

O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não...

Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...

Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...

Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil...

Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou...

Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...
Por que não, por que não...





Caetano Veloso, vencedor de melhor letra do festival anterior, apresentou em 67 Alegria, Alegria, uma letra que destoava bastante de uma tradição da MPB: a presença da contemporaneidade (espaçonaves, guerrilhas, Cardinale, Brigite...); a fragmentação do mundo em metonímias (dentes, pernas...); a realidade brasileira (fome, fuzil...), sem discurso panfletário; a construção
sintática sem conectivos ( Ela pensa em casamento/Eu nunca mais fui à escola...); a simultaneidade e a superposição de fatos, em uma era já de muita informação ( Quem lê tanta notícia?), refletindo a vida fragmentada das cidades grandes...
O mote central de alegria e liberdade, melhor expresso nos versos “caminhando contra o vento/sem lenço, sem documento” e que se dissemina em “Os olhos cheios de cores/ O peito cheio de amores vãos”, “O sol é tão bonito” e em “Nada no bolso ou nas mãos”. O ir contra o vento ou contra a correnteza, ou até mesmo contra o sistema (por que não?) é enfatizado no verbo ir, várias vezes repetido, e no verso “Eu quero seguir vivendo, amor”, em que aparece também a ideia de movimento. A alegria se encontraria talvez no descompromisso, no não pertencimento, no seguir sempre em frente ...
Por outro lado, a rima documento e casamento associa, tanto na forma quanto no conteúdo, as duas coisas, afinal casamento é um documento e representa um mundo oficial contra o qual ele aparenta se colocar. Ainda que seja a mulher que queira, de forma insistente, se casar, sua voz parece contrariar um mundo sem lenço nem documento e uma vida sem nada no bolso ou nãos. Ou seja, o eu lírico transita de um mundo do sem (lenço, documento, escola, livros, telefone, fuzil, dinheiro...) para o mundo do com.
Há no ar um embate. A violência da época (crimes, bomba e fuzil) e a referência ao poder (em caras de presidente), de um lado, e a busca da libertação política de outro (guerrilhas); a liberdade de não ter documento e o documento do casamento; a coca-cola, o símbolo da capitalismo, nas mãos, e o “nada” nos bolsos e nas mãos,de outro; a televisão, ícone máximo de alienação e domínio do imaginário, de um lado, e o desejo de liberdade, de outro.
O verbo pensar não aparece em relação à escola ou a livros, mas a casamento e televisão, em evidente choque semântico. E a natureza das cidades litorâneas (Salvador? Rio de Janeiro?) prevalece (O Sol é tão bonito) sobre a cultura do contra, ou a contracultura que se delineava no fim dos 60.
Será que, vista hoje, Alegria, alegria, apesar de todas as inovações estéticas, não acabou sendo um canto de desencanto das dores que viriam após 68, com a vitória das celebridades da cultura de massa, de um país com fuzil e sem livros, de um modelo de vida com lenço e documento, com o fim do último movimento romântico da História em meados de 70.
Mais fragmentados nos tornamos, como cacos de coca. Aquela alegria hoje é apenas um retrato na parede. Mas como dói!

Marcus Vinicius Quiroga

Um comentário:

  1. Muito boa a interpretação da letra de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso. Parabens meu querido poeta. Beijos, Regina

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