domingo, 11 de março de 2012

II - FESTIVAL 67. RODA VIVA





RODA VIVA
Chico Buarque

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...

O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...

Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...(4x)


No festival de 67 da Record, havia uma oposição, não totalmente declarada, (apesar da passeata contra as guitarras, da qual G. Gil estranhamente participara) entre uma “roupagem” diferente de Gil, Caetano e os Mutantes e a tradicional (digamos assim) de Edu Lobo, Chico Buarque, Sérgio Ricardo etc. De um lado, arranjos mais sofisticados e o uso de guitarras na MPB; do outro, os ritmos nordestinos e o samba.
Se a música de Roda viva era um samba, o que, portanto, daria continuidade a uma tradição, sua letra tratava do descontínuo. Caso alguém diga que os versos octossílabos de octetos e o refrão também remetem à tradição, lembrarei que em 67 a Semana de Arte Moderna, com o seu verso livre, já tinha a maturidade de seus 45 anos, não mais uma adolescente travessa. Certo também que o refrão tornou-se um apelo nos festivais, para cativar as plateias que, com palmas e entusiasmo, influenciavam o júri.
De qualquer forma, se compararmos com as demais letras selecionadas, ela tem uma profundidade de questionamento que não aparece, por exemplo, em Domingo no parque, ainda que esta fosse mais inovadora esteticamente (na segunda parte e nos arranjos). Queremos dizer com isto que o uso de formas tradicionais (sic) pode servir para conteúdos não acomodados.
As quatro estrofes põem em questão a força do tempo, da engrenagem social, da mídia, da contemporaneidade, de tudo que nos afasta de nós mesmos. Voz, rosa, roda de samba, barco, mulata, viola são signos populares, de fácil compreensão, e habitam o repertório da MPB, ao passo que, na época, as referências (refrigerantes, atrizes de cinema e a fragmentação da mídia) de Alegria, alegria eram mais atuais.
Os quatro versos iniciais das quatro estrofes variam a reflexão sobre o estar naquele momento no mundo. O sujeito (a gente) se encontra em desencontro com o mundo, este cresceu e aquele estancou; vai contra a corrente (A repressão da ditadura? As pressões sociais e sua hipocrisia? As leis do mercado?...); lamenta certas mudanças (ou perdas) que tiraram a sua alegria de cena; e conclui com o eterno tema da efemeridade do tempo: tudo é ilusão, tudo passa, tudo se desfaz.
Neste sentido, o autor retoma o final de A banda, vencedora do festival anterior: ”Mas para meu desencanto/ O que era doce acabou/Tudo tomou seu lugar/ Depois que a banda passou/E cada qual no seu canto/ Em cada canto uma dor/ Depois da banda passar/ Cantando coisas de amor”
Vemos aqui o mesmo tom de desalento (embora na ocasião todos achassem A Banda uma música alegre). O questionamento do livre-arbítrio, da escolha e da iniciativa aproxima mais esta letra de versos de Ponteio do que do crime passional de Domingo no parque: “Jogaram a viola no mundo/ Mas fui lá no fundo buscar/ Se eu tomo a viola/Ponteio!/Meu canto não posso parar/ Não!...” Só que, se Capinam fala de ação e resistência, Chico fala de ação e fracasso: a roda viva, ou melhor, as rodas vivas políticas, sociais, musicais ou literárias vencem.
Triste profecia.


Marcus Vinicius Quiroga

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