sábado, 30 de outubro de 2010




O DESAFIO DE DAR TÍTULO À OBRA


Muitos escritores dizem que têm dificuldade na hora de dar um título a seu texto, e há até os que preferem deixa-lo sem título. Neste caso para identificação, usamos o primeiro verso. Isto quando fazemos um poema, e não sei de caso em que haja obra em obra sem título.
Quando o texto é não-literário, sempre disse para o autor fazer o texto e, terminado, olhar para ele e batizá-lo, de acordo com a sua fisionomia. Piada à parte, este “método” pode ser usado também para textos literários.
Devemos ter cuidado de não escolhermos títulos óbvios, que apenas revelem o tema, como acontece com muita redação escolar e com muito poema anterior ao século XX. Lembremo-nos de que o título pode ser usado como o primeiro verso do poema e, portanto, já fazer parte dele. E, mais ainda, que o título pode ser uma oportunidade de criação, para atrairmos a atenção do leitor.
É claro que os gostos são diferentes e os leitores, dependendo também de sua formação, se sentirão mais ou menos seduzidos por este ou aquele título. Se o lugar-comum e o óbvio são objetivos, já a preferência pelo incomum é subjetiva.
Leio no jornal a estréia do espetáculo “Coreografia para prédios, pedestres e pombos” e me sinto atraído pelo título. Em seguida, vejo todas as peças em cartaz e nenhum título me soa criativo. Há os tolos, os apelativos e os corretos como Navalha na carne e Deus da Carnificina, Dolores Duran eternamente. E títulos como Mais respeito que sou tua mãe, Não existe mulher difícil ou A noviça mais rebelde me afastam de qualquer sala de teatro.
Mas a aliteração do “p” no espetáculo de dança e a associação de prédios e pedestres instigam o meu desejo. Então, penso com meus botões: O que será que Dani Lima e Paola Barreto criaram que faz jus a este título tão sugestivo?
Repito: devemos ver o título como uma oportunidade a mais de sermos poéticos e não como apenas uma obrigação para que o texto seja identificado no sumário. Como exercício, que tal pensarmos em título hipotéticos para poemas, contos, romances?


Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

UMA REFLEXÃO INTEMPESTIVA


Modinha do empregado de banco


Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.


Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.


Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.


Neste poema de Murilo Mendes temos a oposição entre a imaginação, característica de todo artista, e o pragmatismo, típico de diretores e donos de banco. Esta dicotomia normalmente se dá durante toda a vida de quem lida com arte ou gostaria de ter alguma
atividade artística. Salvo exceções, os artistas têm dificuldade de cuidar das coisas práticas da vida, particularmente as profissionais.
A “modinha” do poeta mineiro apresenta o impasse: há uma vida lá fora, mais criativa, chamando por ele, que se vê obrigado a permanecer dentro do banco, em um serviço burocrático e alienante, que ele julga inútil.
Como usar a imaginação (ou a arte) em prol da realização pessoal e fazer da atividade artística (a literatura, por exemplo) também uma prática profissional é o desafio diário de todos os que escrevem.


Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 26 de outubro de 2010

ANALOGIAS


Vimos há pouco tempo Construção, de Chico Buarque, em que o autor usa a comparação em quase todos os versos. Notemos que se trata de uma das letras mais criativas da MPB, feita com a figura de linguagem mais simples: a comparação. Este exemplo serve para algumas coisas: por mais que a literatura tenha se modificado no século XX, as figuras de linguagem de que dispomos são as mesmas; podemos fazer um texto bom e até original com recursos antigos e batidos; a comparação (que qualificamos como a figura mais simples) é que estrutura o texto, ao lado, das rimas esdrúxulas.
Lembremo-nos de que a nossa aprendizagem se dá pela analogia, pois toda explicação busca semelhanças, que podem ser óbvias ou arbitrárias. Uma comparação pode ser um achado ou, pode, mesmo casualmente criar sentidos inesperados e não pensados antes. Além, é claro, de permitir n interpretações.
Neste poema de Fernando Pessoa, os versos se encaminham para uma comparação que tem um elemento objetivo, pois o rosto dela passa a chamar tanta atenção quanto um girassol, mas também tem elementos subjetivos, uma vez que as palavras evocam sentidos particulares para leitores diferentes. Girassol, por exemplo, tem cargas significativas e afetivas bem diversas. E tudo graças a uma simples comparação.



O AMOR É UMA COMPANHIA
Alberto Caeiro


O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

domingo, 24 de outubro de 2010

A SUBJETIVIDADE

Pensando sobre a questão do que pode ser identificado como poético, deparamo-nos com a noção da subjetividade. Para muitos, poesia é um olhar subjetivo para o mundo e, graças a uma tradição sócio-cultural-econômica, o poeta, que não é remunerado por seu ofício, representa o oposto de valores capitalistas, elegendo como escolha as coisas simples, a natureza, tudo que vai na contramão do mercado. Esta visão também parece enraizada em boa parte do público leitor. Daí uma das explicações do sucesso dos livros de Manoel de Barros.
Aqui temos dois poemas como exemplo desta noção de poesia e subjetividade. O primeiro é Sonia Sales, tirado de seu livro 50 poemas escolhidos pelo autor, da Editora Galo Branco. E o segundo, de Fernando Pessoa.
Quando saio de uma sessão da tarde nas salas de cinema do centro cultural Lauro Alvin, também gosto de apreciar o pôr do sol no Arpoador e entendo bem o que a poeta diz. Lembrei-me ainda, lendo este texto, de um concerto de Tom Jobim no final do Arpoador e de sua frase “Enterrem meu coração nas areias desta praia”. Ora, a música de Tom, executada por ele mesmo, em um final de tarde, também nos remete a outra concepção de poesia.


SOU DONA DO MUNDO

Pisando em meregue
esparramando os dedos na areia
loura, torrada de fim de tarde
quase feliz vou contando
as latas de Coca amassadas
molengas.
Pipoca doce lambuzando minha boca.
Liberta, viva, caminhando
ao encontro do horizonte
com desejos amorais de amor.
Pranchas de surfe enfileiradas , como
soldados na Guerra do Vietnã
Gelatinas de algas escorrendo do mar.

Lavram-se escrituras, tomo picolé de chocolate.

Não quero riquezas
Sou dona do mundo
Tenho o pôr do sol do Arpoador

Sonia Sales





O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Alberto Caeiro

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

LETRA E POEMA 2





Falamos há dias sobre a questão de letra e poema e dissemos que são diferentes, apesar de terem o mesmo material e usarem muitas vezes os mesmos recursos. Lembramo-nos, de repente, não mais que repente, de poetas que se tornaram letristas, como Betty Tchatcher (alguém se lembra do Renaissance?) e Vinicius de Moraes. Isto talvez sirva para mostrar as diferenças entre poeta e letrista ou para sugerir que um poeta, ao fazer uma letra, mantém-se poeta ou torna-se letrista. Por enquanto, vamos com exemplo da prata da casa.
A nossa opinião, reafirmamos, é que a letra normalmente não se sustenta sem a música e que se desvaloriza, quando posta na página de um livro,porque um dos critérios para apreciá-la é a sua adequação ou não à melodia para a qual foi feita.

APELO
Vinicius de Moraes
Composição: Vinícius de Moraes e Baden Powell

Ah, meu amor não vás embora
Vê a vida como chora, vê que triste esta canção
Não, eu te peço, não te ausentes
Pois a dor que agora sentes, só se esquece no perdão
Ah, minha amada me perdoa
Pois embora ainda te doa a tristeza que causei
Eu te suplico não destruas tantas coisas que são tuas
Por um mal que eu já paguei
Ah, minha amada, se soubesses
Da tristeza que há nas preces
Que a chorar te faço eu
Se tu soubesses num momento todo arrependimento
Como tudo entristeceu
Se tu soubesses como é triste
Perceber que tu partiste
Sem sequer dizer adeus
Ah, meu amor tu voltarias
E de novo cairias
A chorar nos braços meus

Soneto da Separação
falado por Vinícius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto,
silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento,
Que dos olhos desfez a última chama,
E da paixão fez-se o pressentimento,
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente não mais que de repente,
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo, o distante,
Fez-se da vida uma aventura errante,
De repente não mais que de repente.


(novamente no ritmo da música)
Ah, meu amor tu voltarias
E de novo cairias
A chorar nos braços meus.
Ah, meu amor tu voltarias
E de novo cairias
A chorar nos braços meus.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

CONSTRUÇÃO

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

CONSTRUÇÃO PARATÁTICA

Diz-se em oficinas que a poesia está mais próxima das orações coordenadas e a prosa, das orações subordinadas. João Cabral, no entanto, desfaz esta
afirmação. De qualquer forma, vale a penas pensarmos sobre estas diferenças
sintáticas, a partir de alguns textos.


POEMA ESSENCIALISTA

A madrugada de amor do primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O aperto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade, carne,tempo
E a permanência no absoluto e no imutável.


Murilo Mendes

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O DIÁLOGO COMO ESTRUTURA DE UM TEXTO POÉTICO

Os dois textos abaixo (Sinal fechado e Amigo é pra essas coisas) são duas letras de música muito bem boladas, feitas sob a forma de diálogo, e servem como exemplo para um exercício de criação. Escolhamos uma situação adequada para um diálogo particular e façamos um texto com esta estrutura.
Vejam como no primeiro texto o diálogo serve para mostrar a dificuldade de comunicação entre os que vivem em grandes metrópoles e não têm tempo para nada; já o segundo, ao contrário, mostra a amizade e a solidariedade de um grupo de amigos à mesa de um bar.


Sinal Fechado
(Paulinho da Viola)

Olá, como vai
Eu vou indo e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranqüilo, quem sabe?
Quanto tempo...
Pois é, quanto tempo...

Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios...
Qual, não tem de que
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona?
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo, talvez
Nos vejamos, quem sabe?
Quanto tempo...
Pois é, quanto tempo...

Tanto coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa rapidamente
Pra semana...
O sinal...
Eu procuro você...
Vai abrir!!! Vai abrir!!!
Eu prometo, não esqueço, não esqueço
Por favor, não esqueça
Adeus... Adeus...


AMIGO É PRA ESSAS COISAS
Aldir Blanc


- Salve!
- Como é que vai?
- Amigo, há quanto tempo!
- Um ano ou mais...
- Posso sentar um pouco?
- Faça o favor
- A vida é um dilema
- Nem sempre vale a pena...
- Pô...
- O que é que há?
- Rosa acabou comigo
- Meu Deus, por quê?
- Nem Deus sabe o motivo
- Deus é bom
- Mas não foi bom pra mim
- Todo amor um dia chega ao fim
- Triste
- É sempre assim
- Eu desejava um trago
- Garçom, mais dois
- Não sei quando eu lhe pago
- Se vê depois
- Estou desempregado
- Você está mais velho
- É
- Vida ruim
- Você está bem disposto
- Também sofri
- Mas não se vê no rosto
- Pode ser...
- Você foi mais feliz
- Dei mais sorte com a Beatriz
- Pois é
- Vivo bem
- Pra frente é que se anda
- Você se lembra dela?
- Não
- Lhe apresentei
- Minha memória é fogo!
- E o l'argent?
- Defendo algum no jogo
- E amanhã?
- Que bom se eu morresse!
- Prá quê, rapaz?
- Talvez Rosa sofresse
- Vá atrás!
- Na morte a gente esquece
- Mas no amor agente fica em paz
- Adeus
- Toma mais um
- Já amolei bastante
- De jeito algum!
- Muito obrigado, amigo
- Não tem de quê
- Por você ter me ouvido
- Amigo é prá essas coisas
- Tá...
- Tome um cabral
- Sua amizade basta
- Pode faltar
- O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A INTRATEXTUALIDADE

SAUDADE
(autoantologia ao modo de Manuel Bandeira)

É o que se traz do que se perde,
este lembra aqui sem ter agora.
essa lembrança
intermitente e calada
de casarios e cheiros.

Já quase nada
é o que já foi.

Ai se eu pudesse voltar...

Era tudo tão distinto
quando vim,
quando era tudo antes.
Luz, voz, coisas
que se vão por onde chegam.
Para onde?

Onde estão,
onde estavam, se há pouco sorriam?
Fala-me delas,
do tempo que as usou e despediu.

Mas
desconverso e me calo, porque desde
doendo uma saudade que nem sei.
Nem fosse perda o que a lembrança traz.


Izacyl Ferreira Guimarães



Manuel Bandeia certa vez escreveu um poema a que deu o elucidativo título de Antologia, reunindo versos de vários poemas, de forma que esta seleção compusesse um texto novo e que pudesse ser lido independente da leitura prévia dos textos originais.
Esta técnica de colagem nos parece o exemplo máximo de intratextualidade, pois todos os versos já existiam. Antologia é um texto inédito, por ser uma reorganização destes versos. Inédita mesmo foi a ideia de Bandeira.
Não nos esqueçamos de que Bandeira fez Poética e Nova Poética, Canção do Beco e última canção do Beco, como exemplos de textos em que há referências a outros de sua autoria. Ou seja, o exercício de intratextualidade já lhe era caro.
Agora temos em Na duração da matéria, recém lançado livro de Izacyl Guimarães Ferreira o poema Saudade, em o poeta carioca (e radicado em São Paulo) tem o mesmo procedimento, selecionado versos de diferentes poemas para a composição deste texto, perfeitamente adequado ao espírito do livro. Com isto, Izacyl criou um curiosos exemplo: um texto que ao mesmo tempo mantém relações intratextuais e intertextuais.
A intertextualidade é uma característica quase obrigatória do século XX, uma vez que a reflexão sobre a produção ficcional e teórica é típica deste século.
A metalinguagem não se originou no século passado, mas foi por ele “patenteada”. Não queremos dizer com isto que devamos fazer textos intertextuais, mas que nos parece uma consequência inevitável do interesse que o escritor (até primeiro como leitor) tem por outros escritores.
Já os poemas intratextuais ocorrem em menor número. Citemos outros exemplo: Legado de Carlos Drummond de Andrade, em que o poeta mineiro usa o verbo haver para “corrigir” o verbo ter, do famoso poema Uma pedra no meio do caminho. O verso “tinha uma pedra no meio caminho” aparece em “De tudo quanto foi meu passo caprichoso/ na vida, restará, pois o resto se esfuma, /uma pedra que havia em meio do caminho”.


Marcus Vinicius Quiroga

LETRA E POEMA

MAIS DO QUE DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE A PALAVRA ENCANTADA
(O DOCUMENTÁRIO)


O documentário, apesar de ser feito só com depoimentos, traz à tona questões sobre música e literatura que sempre são tema para muito debate. Acontece que em certos filmes (ficção ou documentário) várias vezes discutimos mais o tema ou o enredo do que o filme.
De qualquer forma, vamos assinalar alguns pontos.


1 – A velha (e não esgotada pelo jeito) pergunta se há diferença entre letra e poema aparece com frequência no filme. Ficamos com o depoimento de Chico Buarque, que mais uma vez se diz letrista, e não poeta। Como é considerado um dos maiores letristas de todos os tempos da MPB, é bom que seja o próprio compositor a dizer isto, pois Chico é de fato letrista, o que não o torna menor de quem é poeta, mas diferente.

2 – Poema e letra lidam com os mesmos recursos como ritmo, rima, figuras de linguagem, métrica etc, mas, mesmo assim, há diferenças na utilização dos recursos.

3 – O grau de comunicabilidade da letra é normalmente, por razões óbvias, muito maior do que o do poema.

4 – A letra trabalha com lugares-comuns que seriam mal vistos no poema. É, portanto, mais redundante, pois tem como finalidade atingir um público maior.

5 – A letra deve ser analisada junto da melodia, não isoladamente. Não é à toa que a maioria das letras perde força, quando sozinhas no papel.

6 – Quem diz que tal letra é um verdadeiro poema, na verdade está depreciando a letra, pois elogiá-la é compará-la a um poema. Neste caso, quem diz isto está considerando o poema como algo superior à letra, embora provavelmente não tenha esta intenção.

7 – Outra declaração também muito ouvida e equivocada é a seguinte:”Não há diferença entre letra e poema. Há a boa letra e o bom poema.” Em primeiro lugar, quem vai estabelecer os critérios para definir a letra boa ou a ruim?
Em segundo, a frase nos lembra outra repetida afirmação falaciosa sobre músicas erudita e popular, que também são diferentes, sim. Assim, como a música popular não é pior do que a erudita, a letra não é pior do que o poema. Mas não são, de modo algum, a mesma coisa.

8 – O fato de encontrar a função poética na letra não quer dizer que ela seja um poema, mas que há uma função poética, como há também na música, pintura, no teatro, no cinema, na dança, na escultura, na arquitetura ou até mesmo na publicidade. Em outras palavras, poema e poesia não são necessariamente a mesma coisa, ainda que no dia a dia usemos as duas palavras sem fazer a distinção de significado.

9 – É claro que existem letras que poderiam ser publicadas e não só gravadas. No entanto, trata-se, sem dúvida, de um número bem pequeno.

10 – Há poemas que se “prestam” mais a serem musicados do que outros, porque já possuem mais musicalidade em suas palavras.

11 – Como a maioria das letras de qualquer cancioneiro popular usa mais uma linguagem denotativa, quando o ouvinte percebe versos conotativos tem a tendência a chamar a letra de poema. Ora, a letra pode ser conotativa, como Construção do já citado Chico Buarque. Esta, sim, é uma letra que poderia ser lida sem música, tal a sua força imagística.

12 – O fato de encontrarmos uma imagem na letra não quer dizer que ela seja um poema, nem que seja boa. Lembremo-nos de que as letras usam muitos clichês e imagens gastas.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010



O PRAZER DE ESCREVER

Costumamos fazer referências nas primeiras aulas de oficina a um livro de Augusto Boal: 200 exercícios para o ator e o não-ator. Não só lemos com atenção como o utilizamos em aulas de artes cênicas há bastante tempo. Mas isto não vem ao caso. Interessa-nos o título que esclarece que os exercícios também podem ser feitos para o não-ator.
Explicitando a comparação, diríamos que uma oficina literária pode ser feita por não-escritores. Isto é, designaremos assim aqueles que escrevem, que gostam de escrever (e de ler, é evidente), mas que não ser pretendem escritores.
Deixaremos esta tarefa de “definir” o que é escritor par outro texto. Agora falaremos sobre o não-escritor: este é o escritor que vai a uma oficina aprender técnicas, exercitar-se, sem a intenção de publicação ou carreira; deseja o legítimo prazer da escrita e isto basta para ele.
Qualquer um que participe de grupos e encontros teatrais e faça exercícios propostos por Boal terá provavelmente prazer e satisfação em realizá-los no momento. E certamente estas horas dedicadas ao trabalho corporal, à integração social, ao exercício de confiança no outro, de análise, de observação, de memorização, de criatividade e de imaginação serão úteis para a sua vida, fora do espaço e do tempo das aulas de artes cênicas.
Recomendaríamos aulas de dramatização para a grade curricular de toda escola, não só por se tratar de uma arte, mas (opinião nossa) de ter uma serventia existencial para os alunos que talvez as demais artes não ofereçam.
Cremos que o mesmo acontece em uma oficina literária, só que de forma menos visceral, pois, por exemplo, seria menos provável a catarse lendo um texto do que vivenciando os sentimentos de um personagem.
De qualquer forma, lembremos que um não-escritor (como um não-ator) pode se interessar por uma oficina e dela tirar proveito. Este proveito não será convertido em livro, como os exercícios teatrais também não precisam necessariamente convergir para a montagem de uma peça.
Em outras palavras, a participação de uma oficina não precisa ter como objetivo o aprimoramento de sua linguagem, mas simplesmente a sua expressão e o prazer da elaboração de um texto sem fjnalidade específica.
Talvez o não-escritor não seja o frequentador típico de oficinas e nem sempre seja bem compreendido. Mas a experiência fez com que consideremos legítima a sua presença nas aulas de oficina. Até porque rara não é a surpresa de tempos depois (às vezes anos) o não-escritor apresentar uma obra mais consistente do que seus ex-colegas de turma.
Queremos dizer ainda que todo ator tem dentro dele antes um não-ator. E assim o escritor. Não nascemos atores ou escritores, mas podemos nos transformar em tais artistas.

Marcus Vinicius Quiroga

sábado, 2 de outubro de 2010

A POESIA COMO ARTE



   


“Em Londres, não faz muito tempo, em 1914, a maioria dos poetastros ainda estranhava a ideia de que a poesia fosse uma arte; eles achavam que a poesia devia ser feita sem qualquer análise, tinha que brotar’’.   Ezra Pound (in ABC da Literatura)

    O espanto de Pound diz respeito a uma visão estética de 1914, mas em 2010 ainda ouvimos comentários sobre poesia não muito diversos. E o verbo “brotar” ou equivalentes sempre significam que o poeta tem um dom especial, capaz de diferenciá-los dos demais seres, e que, às vezes, (não quando ele o deseja) se põe a escrever versos, cuja qualidade não pode ser questionada.
    Se compararmos a leitura de um poema com a audição de uma música, reconhecemos logo que esta é mal executada ou mal cantada e nos recusamos a ouvi-la. Já com o poema isto não se dá, jamais alguém interrompe a leitura de um poema.
     A desafinação da música dirão, e com razão, é mais fácil de ser percebida e de ser tecnicamente comprovada do que a “desafinação” de um poema, mas isto não quer dizer que este seja feito com menos técnica do que aquela.
     Entendamos que técnica não é sinônimo de regra. Diferentes gêneros musicais têm técnicas, como os poemas, sejam eles de versos livres ou metrificados, de versos brancos ou rimados, de registro formal ou vulgar etc
     Assim como não gostamos de certos gêneros de música, podemos não gostar de poema concreto , ou de elegia, ou de poema em prosa, ou de epopeia. A questão de gosto é pessoal, bem como as razões que nos fazem preferir um tipo de texto a outros.
     Pound nos lembra aqui da diferença entre o poema “brotado” e o poema feito com arte. Um não se quer elaborado, analisado e refeito, é apenas feito de um impulso subjetivo; já o outro exige a reescritura e o uso de recursos tidos como literários em uma determinada época.
     Se o poema “brotado’’ valoriza a espontaneidade e ignora a intenção poética, o que é feito com arte baseia-se em elementos de composição que representem um consenso de boa literatura por seus contemporâneos. Ora, é claro, que os críticos, com o tempo, mudam, e se os poemas parnasianos são há décadas mal vistos, boa parte da produção atual não seria qualificada sequer como literatura por escritores e críticos de formação parnasiana, no final do século XIX.
    As palavras de Pound, ditas em oposição a certos escritores londrinos de 1914, lembram-nos (caso tenhamos em algum momento esquecido) de que poesia é arte. E arte pode e deve ser aprendida e isto não equivale a dizer que qualquer um pode ser um bom poeta.
    Deem dicionários de referência, de sinônimos, de rimas a várias pessoas com a mesma formação universitária e peçam que façam poemas. Talvez nenhum deles o realize. Deem-lhe aulas de poesia e, mesmo assim, talvez anos depois ainda não tenhamos um bom poeta ou mesmo um poeta.
    De qualquer forma, se poesia é arte, e não desabafo, confissão, vômito discursivo, mas arte que não dá a garantia de ser sempre realizada satisfatoriamente. Uma coisa é reconhecer que para se fazer boa poesia é necessário estudo (diga-se bastante leitura), outra é achar quer toda pessoa culta pode ser bom poeta, o que é falso. A lição de Pound é quanto ao pensamento contrário, que é ingênuo e defensivo, pois, se poesia não for arte, não poderemos avaliar o que escrevemos e tudo que fizermos será uma obra-prima, não passível de comentários críticos.
    Não, o poeta não é um cidadão acima de qualquer suspeita.


                             Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O VERSO LIVRE


    Os anos 20 oficializaram o verso livre em nossa literatura. E, de lá para cá, com exceção da geração de 45, ele tem predominado sobre o verso metrificado. Especialmente, se levarmos em conta os livros dos poetas que publicam por editoras pequenas e médias, e que não fazem parte da literatura “visível” do país.
   Diríamos que o verso livre é uma das muitas conquistas feitas pelo Modernismo, mas, como várias outras, nem sempre foi bem entendido, pois fazer da liberdade métrica obrigação é, no mínimo, um paradoxo. Ignorar a métrica em nome da “modernidade” é uma atitude ingênua, que, muitas vezes, só revela preguiça e falta de estudo, porque é mais cômodo adotar o verso livre, principalmente por não se conhecer as regras de metrificação.
    Lembremo-nos da advertência de Manuel Bandeira de que o versilibrismo não era tão “livre” assim. Ou seja, ele quis dizer que o verso livre também exige estudo e aprimoramento. Mas a leitura de vários livros em versos livres nos faz pensar que poucos ouviram o Bandeira. Diríamos até que há “poemas” que se pensam poemas, só por terem frases dispostas verticalmente 
    Ao lado do verso livre, o verso branco tornou-se também bastante frequente. Vejamos o exemplo de Carlos Drummond de Andrade, poeta que se inicia nos anos 20 e faz parte da geração de 30. A maioria de seus poemas é feita com versos brancos e livres, no entanto Drummond dominava a técnica da métrica e usou a rima quase sempre de forma bem mais criativa do que outros poetas que a adotaram como regra.
    Logo, a questão não é apenas de metrificar ou não, rimar ou não. A qualidade do texto depende de uma soma de realizações estéticas, e não se restringe a esta ou àquela característica. O poema não pode ser depreciado por ter versos livres ou metrificados, pois o uso ou não da métrica é opção expressiva do poeta.
    Esperemos, sim, que o versilibrismo ou a métrica estejam a serviço da causa poética e que a escolha se deva  à necessidade literária, e não a uma regra, a um modismo, ou a uma visão preconceituosa.
    Recomendaríamos aos poetas que estudassem a métrica e que a usassem, para depois escolherem. A “proibição” dos versos livres ou metrificados nos parece um equívoco, que só traz prejuízos à compreensão da boa poesia brasileira.

                                                   Marcus Vinicius Quiroga