domingo, 23 de dezembro de 2012




Catar feijão

João Cabral

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 



Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.



Caçar em vão

Armando Freitas Filho



Às vezes escreve-se a cavalo.
Arremetendo, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando
por cima sem puxar o freio —
a galope — no susto, disparado
sobre as pedras, fora da margem
feito só de patas, sem cabeça
nem tempo de ler no pensamento
o que corre ou o que empaca:
sem ter a calma e o cálculo
de quem colhe e cata feijão.


Armando respondeu a João e explicitou no último verso a sua proposta.
Agora faça você um poema em que haja outra analogia com o ato de criar, respondendo ou não a Cabral e a Freitas Filho (catar feijão e ir a cavalo).

sexta-feira, 30 de novembro de 2012




  


     Sempre digo que normalmente o leitor (e, portanto, o escritor) não pensa muito na estrutura sintática da obra. E reconheço que é difícil ser inovador sintaticamente, a ponto de criar marcas estilísticas. Basta fazer a pergunta: Quantos poetas você reconhece pela sintaxe?
    Ouvindo duas canções com Renato Teixeira, prestei atenção a versos que trazem a ideia de causa. Em Romaria, de sua autoria, diz Como eu não sei rezar / Só queria mostrar/Meu olhar, meu olhar/ Meu olhar”. E em Tocando em frente, em parceria com Almir Sater, temos “Ando devagar/porque já tive pressa”.
    Na primeira, os versos são o desfecho da letra e a oração causal inicia o período, tendo, pois, papel de destaque: o fato de não saber rezar se sobrepõe ao de olhar. Já na segunda, os versos iniciam a canção e a oração causal vem depois da principal. Então o fato de andar devagar merece mais nossa atenção do que a causa de já ter tido pressa. Lembremo-nos de que sintaxe diz respeito à ordem. Se naquela a sua luz evidencia a ausência da reza, nesta, o modo vagaroso de “andar”.
    Como sabemos, toda ideia de causa traz implícita a de consequência e vice-versa, o que explica a troca costumeira em salas de aula das duas ideias. Já, fora das salas, o que mais vemos é a dificuldade de reconhecimento da causa, como se os fatos das orações principais ocorressem soltos no ar.  
    Em Tocando em frente, a antítese devagar-pressa explica a relação de causalidade de forma curiosa: a causa de alguma coisa é o seu oposto. Diria ainda que vale a pena pensar sobre a causa, seja no início ou no final do período, pois, sem ela, paramos no reconhecimento dos fatos, mas não fazemos o seu entendimento.


Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 27 de novembro de 2012



AQUARELA
(Vinícius de Mores e Toquinho)

Numa folha qualquer 
Eu desenho um sol amarelo
 
E com cinco ou seis retas
 
É fácil fazer um castelo
 

Com o lápis em torno da mão 
E me dou uma luva
 
E se faço chover
 
Com dois riscos tenho um guarda chuva
 

Se um pinguinho de tinta 
Cai num pedacinho azul do papel
 
Num instante imagino
 
Uma linda gaivota a voar no céu
 

Vai voando, 
Contornando a imensa curva norte sul
 
Vou com ela viajando
 
Havaí, Pequim ou Istambul
 

Pinto um barco a vela, 
Branco, navegando,
 
É tanto céu e mar num beijo azul
 

Entre as nuvens vem surgindo 
Um lindo avião rosa e grená
 
Tudo em volta colorindo
 
Com suas luzes a piscar
 

Basta imaginar e ele está partindo, 
Sereno, lindo,
 
E, se a gente quiser,
 
Ele vai pousar
 

Numa folha qualquer 
Eu desenho um navio de partida
 
Com alguns bons amigos
 
Bebendo de bem com a vida
 

De uma América a outra 
Consigo passar num segundo
 
Giro um simples compasso
 
E num círculo eu faço o mundo
 

Um menino caminha 
E caminhando chega num muro
 
E ali logo em frente
 
A esperar pela gente o futuro está
 

E o futuro é uma astronave 
Que tentamos pilotar
 
Não tem tempo nem piedade
 
Nem tem hora de chegar
 

Sem pedir licença 
Muda nossa vida
 
E depois convida
 
A rir ou chorar
 

Nessa estrada não nos cabe 
Conhecer ou ver o que virá
 
O fim dela ninguém sabe
 
Bem ao certo onde vai dar
 

Vamos todos numa linda passarela 
De uma aquarela
 
Que um dia enfim
 
Descolorirá
 

Numa folha qualquer 
Eu desenho um sol amarelo
 
(que descolorirá)
 
E com cinco ou seis retas
 
É fácil fazer um castelo
 
(que descolorirá)
 

Giro um simples compasso 
E num círculo eu faço o mundo
 
(que descolorirá)
 


     Sem dúvida, Toquinho e Vinícius de Moraes  tiveram um dos “casamentos” mais felizes da MPB   E o segundo tratava de fato suas parcerias como casamentos. Mas reparemos como se dá o casamento entre letra e música em Aquarela.
      Esta canção fez muito sucesso e se tornou um hit da dupla, agradando ao público dos 8 ao 80. A área semântica infantil nos faz pensar em uma canção para crianças. Subitamente os versos “ E o futuro é uma astronave/Que tentamos pilotar” mudam tudo, pois tentamos pilotar”, já não temos a certeza e o controle.
      Distraídos, talvez cantemos alegres a canção sem prestar atenção na armadilha dos versos finais. O refrão “que descolorirá” se intromete, sugerindo o desfecho adverso, ou seja, tudo será desfeito: o sol amarelo, o castelo e o mundo. Lembra-nos o caso de A Banda, de Chico Buarque, cantada normalmente com entusiasmo, embora terminasse de modo desiludo:”Mas para meu desencanto/O que era doce acabou/Tudo tomou seu lugar/Depois que a banda passou/E cada qual no seu canto/Em cada canto uma dor/Depois da banda passar/Cantando coisas de amor/Depois da banda passar/Cantando coisas de amor”.
    Leitores dos existencialistas, diríamos que o futuro é o próprio homem e somente por ele é feito, portanto, não teríamos desculpas para explicar ou ler os acontecimentos. E pensamos de forma contrária aos versos “Nessa estrada não nos cabe/ Conhecer ou ver o que virá”. Se o lápis se encontra em nossas mãos, como podemos nos surpreender com o desenho?  


Marcus Vinicius Quiroga 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012




            ÀS BAILARINAS

            Braços que se abrem para abarcar o mundo.
            Pernas que se alongam procurando caminhos.
            Pés que  desenham múltiplas mandalas.
            Mãos que buscam o suplicado infinito.

            Cabelos, olhos, hora, nuca
            cintura, torso, músculos.

            Mas a bailarina sabe
            que a cada movimento da dança
            corresponde um movimento do espírito.


Cristina da Costa Pereira


Notemos no poema alguns recursos estilísticos: o paralelismo sintático na 1ª estrofe; a enumeração e a representação metonímica, na 2ª; o uso do conectivo  adversativo para afirmar a ideia fundamental do poema (as estrofes anteriores são a  preparação para a inversão da última).  E, principalmente, observemos o jogo concreto x abstrato no final: no movimento da dança (substantivo abstrato) está implícito a concretude do corpo (substantivo concreto), que não se opõe ao espírito.  Antes estabelece uma relação de correspondência, de equivalência. Especularmente,  ambos se refletem. Ao mostrar aptidão própria do que é concreto – movimentar-se -, o espírito inaugura o poético Na palavra movimento incide a luz da linguagem. 



 Marcus Vinicius Quiroga





quinta-feira, 8 de novembro de 2012


DIÁLOGO

Quem pôs este porto
no meio da sala?
Quem trouxe a tempestade
no vazio das frases?
Quem mantém a âncora
presa no pensamento?
Quem sentou-se à espera
de um rodamoinho?

Quem navega à deriva
no fundo do espelho?
Quem se fez de ilha
no jogo de estátuas?
Quem do continente
acena lenços fictícios?
Quem afoga faróis
nas águas cegas da inércia?

A caixa de medo espia
o uso equivocado do tempo,
enquanto ondas se sucedem
dos dois lados da janela

Marcus Vinicius Quiroga
   

domingo, 4 de novembro de 2012

CANÇÕES DE AMIZADE




AMIGO, AMIGA

Meu pensamento viaja
Em busca de encontrar
Amigo, amiga
Quando viajo por terra
Me sinto mais seguro
Em terras de beira-mar
Amigo, amiga procuro
Meu coração é deserto
Em busca de encontrar
Amigo, amiga ou um rio
Ou quem sabe um braço de mar
Nas terras de beira-rio
Eu sei, me sinto seguro
Em todo rio me lanço
De todo cais me afasto
Molho cidades e campos
Em busca de encontrar
Caminho de outro rio
Que me leve no rumo do mar
Mas falta amigo, amiga
Meu coração é deserto
Amigo, amiga me aponte
O rumo de encontrar
Amigo, amiga ou um rio
E quem sabe um braço de mar
Meu pensamento viaja

 

QUE BOM AMIGO

 

Que bom, amigo
Poder saber outra vez que estás comigo
Dizer com certeza outra vez a palavra amigo
Se bem que isso nunca deixou de ser

Que bom, amigo
Poder dizer o teu nome a toda hora
A toda gente
Sentir que tu sabes
Que estou pro que der contigo
Se bem que isso nunca deixou de ser

Que bom, amigo
Saber que na minha porta
A qualquer hora
Uma daquelas pessoas que a gente espera
Que chega trazendo a vida
Será você
Sem preocupação

 

CORAÇÃO DE ESTUDANTE


Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar
Pode estar aqui do lado
Bem mais perto que pensamos
A folha da juventude
É o nome certo desse amor
Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Quantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora, cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê
Flor  e fruto
Coração de estudante
Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo
Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes, planta e sentimento
Folhas, coração,
Juventude e fé.


       A amizade é cantada por Milton em mais três letras. São bem simples. A primeira trata de viagem e busca, ou seja, de viagem mais temporal do que espacial. E a viagem espacial se dá simbolicamente em terra ou em rio e braço de mar.      
       Em oposição ao elemento água, a metáfora-núcleo: “Meu coração é deserto”. O encontro significa o fim do deserto, daí as águas do rio ou mar.
       O motivo viagem-busca se desdobra em ideias de movimento: “Em todo rio me lanço/De todo cais me afasto, ou em “Caminho de outro rio/Que me leve no rumo do mar”.
       Se amizade é vista no espaço como um porto seguro, o vento do tempo desfaz os portos e naus se soltam das âncoras. Mas como o vento habita os mares, outras amizades surgem. O que importa, metaforicamente, é o coração não ser deserto.


Marcus Vinicius Quiroga  

CANÇÕES DA AMÉRICA




CANÇÕES DAS  AMÉRICAS

Unencounter

Why did you too leave this town, my friend?
Do you remember that tune
The song you sang to me
Asking about the friends
Who were leaving the town?
You didn't see but I cryed
Because it was my time to go
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
Do you remember that tune my friend?
I can remember you saying
Maybe those people are searching for their place
Maybe their time isn't here
But you could never understand
Because it was your time to stay
But always the same goes on
Always the same goes on
Now you left the town
And I'm here looking for you

Canção da América

Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

     Ouvi Unencounter  nos Estados Unidos pela primeira vez.  E depois quando ouvi  no Rio esta música com o título de Canção da América, algo me soou familiar e irônico. Ela tinha sido para mim de fato uma canção lá da América. Reparem que a letra em português não é uma  tradução literal, mas uma  letra que fala sobre a outra letra. O verso “assim falava a canção que na América ouvi “ parecia que tinha sido feito para mim. Além do fato de que em outro país nós sempre nos lembramos saudosos de nossos amigos...
Não sei se estou sendo claro: a música foi gravada primeiro em inglês e lançada lá fora, antes da versão brasileira.
    A vida tem dessas metalinguagens.

    Agora vamos à oficina.  Nos versos “Mas quem ficou, no pensamento voou/ Com seu canto que o outro lembrou/ E quem voou, no pensamento ficou”,temos um quiasmo (ficou-voou/voou-ficou) e, ao mesmo tempo, um paradoxo (como quem voou pode ter ficado?).  Lembremo-nos de que o quiasmo diz respeito apenas à estrutura, mas o paradoxo trata do sentido e, portanto, é passível de interpretação.
      Aqui vai a canção da América para os amigos que voaram e ficaram ou que ficaram e voaram. A vida tem desses impasses. O Milton e seus parceiros sabem disto.


Marcus Vinicius Quiroga.






segunda-feira, 29 de outubro de 2012

PEQUENAS PARÁBOLAS





I
Afundou
porque tinha pedras nos bolsos
Culpou a água
e não se desfez das pedras

II
O funcionário
quis impor horários
e métodos à água
E se surpreendeu
quando percebeu nas mãos
suas normas encharcadas

III
O engenheiro teve uma ideia inútil:
fazer um esteira de água,
para que o movimento
não o tirasse do lugar

IV

Nos salões
a boca ria alegrias e alegrias
No fim da noite
diante do espelho
a água lavou a anestesia
e os olhos se umedeceram de tristeza

V
Jogava água
todos os dias no vidro da janela
para enxergar o dia ensolarado
Teria sido mais fácil
se desfazer das escuridões

VI
Atirava baldes
obsessivamente no assoalho
porque não o admitia sujo
E a água escorria
para fora da história

VII

A água reconhece na nascente
a sua causa
Os dias que não veem o antes e o depois
ignoram a nascente
e buscam a água no vazio

VIII
Trancou portas e janelas
Muniu-se de teorias
e racionalizações
Não ouviu o relâmpago
e se espantou com a chuva

IX
Lavou todas as pegadas,
todos os resíduos
como o analista mandara
Apagou assim a estrada do retorno

X
Afundou
porque tinha pedras nos bolsos
Culpou os bolsos
e carregava as pedras nas mãos

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

CANÇÕES DA AMÉRICA


CANÇÕES DAS  AMÉRICAS

Unencounter

Why did you too leave this town, my friend?
Do you remember that tune
The song you sang to me
Asking about the friends
Who were leaving the town?
You didn't see but I cryed
Because it was my time to go
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
You were so sad and I didn't know what to do
But to leave with that song leaving you
Do you remember that tune my friend?
I can remember you saying
Maybe those people are searching for their place
Maybe their time isn't here
But you could never understand
Because it was your time to stay
But always the same goes on
Always the same goes on
Now you left the town
And I'm here looking for you

Canção da América

Amigo é coisa para se guardar
Debaixo de sete chaves
Dentro do coração
Assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou
Ao ver o seu amigo partir
Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
E quem voou, no pensamento ficou
Com a lembrança que o outro cantou
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito
Mesmo que o tempo e a distância digam "não"
Mesmo esquecendo a canção
O que importa é ouvir
A voz que vem do coração
Pois seja o que vier, venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

     Ouvi Unencounter  nos Estados Unidos pela primeira vez.  E depois quando ouvi  no Rio esta música com o título de Canção da América, algo me soou familiar e irônico. Ela tinha sido para mim de fato uma canção lá da América. Reparem que a letra em português não é uma  tradução literal, mas uma  letra que fala sobre a outra letra. O verso “assim falava a canção que na América ouvi “ parecia que tinha sido feito para mim. Além do fato de que em outro país nós sempre nos lembramos saudosos de nossos amigos...
Não sei se estou sendo claro: a música foi gravada primeiro em inglês e lançada lá fora, antes da versão brasileira.
    A vida tem dessas metalinguagens.

    Agora vamos à oficina.  Nos versos “Mas quem ficou, no pensamento voou/ Com seu canto que o outro lembrou/ E quem voou, no pensamento ficou”, temos um quiasmo (ficou-voou/voou-ficou) e, ao mesmo tempo, um paradoxo (como quem voou pode ter ficado?).  Lembremo-nos de que o quiasmo diz respeito apenas à estrutura, mas o paradoxo trata do sentido e, portanto, é passível de interpretação.
      Aqui vai a canção da América para os amigos que voaram e ficaram ou que ficaram e voaram. A vida tem desses impasses. O Milton e seus parceiros sabem disto.


Marcus Vinicius Quiroga.






domingo, 14 de outubro de 2012


 

   Após assistir a Nada será como antes, paro para pensar que as canções de Milton Nascimento foram a trilha sonora de minha vida. E me corrijo: foram a trilha sonora da minha geração. Então vejo: idade nem sempre corresponde à geração. Ou: há muitas gerações que são contemporâneas.
   Muitas vezes me surpreendi, ao reconhecer que pessoas do mesmo tempo e da mesma cidade viveram coisas tão diferentes e como  podemos ser distantes daqueles que supostamente pertencem (pertenceram) à nossa geração.

 

Certas Canções


Certas canções que ouço
Cabem tão dentro de mim
Que perguntar carece
Como não fui eu que fiz?

Certa emoção me alcança
Corta-me a alma sem dor
Certas canções me chegam
Como se fosse o amor

Contos da água e do fogo
Cacos de vidas no chão
Cartas do sonho do povo
E o coração pro cantor
Vida e mais vida ou ferida
Chuva, outono, ou mar
Carvão e giz, abrigo
Gesto molhado no olhar

Calor que invade, arde, queima, encoraja
Amor que invade, arde, carece de cantar

 

    Na MPB não há compositor com a voz de Milton ou (Se preferirem)
não há cantor com as suas composições. Daí seus discos terem, desde os anos 60, sido o pano de fundo musical da nossa história.
    A primeira estrofe fala, de forma especular, da identificação das suas canções com os nossos pensamentos. Outros outubros virão.Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Coração americano. Acordei de um sonho estranho. Um gosto, vidro e corte. Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair.

 

Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 4 de outubro de 2012



O NOME

Estão demolindo
o edifício em que não morei.
Tinha um nome
Somente meu.

Meu, de mais ninguém
o edifício
Não era meu

Rápido passando
Por sua fachada
Lia o nome
Que era e é meu.

Cai o teto,
 ruem paredes
internas.
Continua o nome
Vibrando entre janelas
Buracos.

Sigo a destruição
de meu edifício
amanhã o nome
letra por letra
se desletrará

Ficará em mim
o nome que é meu?
Ficarei
para preservá-lo?
Amanhã o galo
Cantará o fim
do que no edifício
E numa pessoa
cabe em um nome
e  é mais do que um nome.

Carlos Drummond de Andrade

   O nome do edifício ou  o nome de qualquer coisa, o nome da algo concreto,
que visivelmente se desfaz: a demolição. Mais uma vez o poeta se vale do
substantivo concreto para falar (ou insinuar ) de substantivos abstratos.
   Mas aqui fica a questão: nome é concreto ou abstrato? Um nome pode ser demolido? O que cabe em um nome que é mais que um nome?   
   Em “O São Borja foi demolido”, o nome é gramaticalmente concreto. Só que diante dos escombros do edifício, “São Borja” torna-se um nome-lembrança,
uma lembrança sem moldura, sem prego e sem parede.

Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 13 de setembro de 2012



DIÁLOGOS

Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!



Muitos  críticos, em vez de me julgarem pelo que eu sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: "Mas isto não é um trator!"

Mario Quintana


  Nos todos gostamos quando, ao lermos um poema, nos identificamos com o que é dito, como se ele tivesse sido escrito para nós. E às vezes até acredita-mos nisto. Daí a impressão de que ele nos lê, nos adivinha, e se torna nosso porta-voz.
   A identificação, a empatia por parte do receptor com qualquer obra de arte é fundamental. Mas não é critério exclusivo de qualidade, pois um texto que des-perta a identificação do leitor não é necessariamente um bom texto

    Esta resposta de Quintana em uma entrevista talvez seja o meu dizer quintaniano preferido. Pois não só os críticos, mas nos diálogos literários e não literários, o que mais vemos é a expectativa prevalecer sobre a mensagem. Esperamos que pessegueiro seja um trator e nos frustramos, quando percebemos que não estamos diante de um trator. E sequer temos olhos para os pêssegos da árvore.
   Mal maior: continuarmos a falar com um pessegueiro na língua do trator, tal a obsessão e a cegueira. E reclamaremos que o pessegueiro não fez o trabalho certo de arar o campo.
   Quem não sair de si para olhar o pessegueiro, vai envelhecer  criticando o trator que não existe.
   A poesia é sempre uma ilha dialógica diante do continente narcísico de monólogos


Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 6 de setembro de 2012


 

Velhos Amigos


 

Velhos amigos vão sempre se encontrar
Seja onde for, seja em qualquer lugar
O mundo é pequeno, o tempo é invenção
Que o amor desfaz na tua mão

Nada passou, nada ficará
Nada se perde, nada vai se achar
Põe nosso nome na planta do jardim
Vivo em você e você dorme em mim

E quando eu olho o imenso azul do mar
Ouço teu riso e penso: onde é que está?
A nossa planta o vento não desfez
É nunca mais, mas é mais uma vez
 

   Nesta letra de Montenegro, vemos nos versos “Nada passou, nada ficará” e “É nunca mais, mas é mais uma vez”  o uso do paradoxo. A princípio todo paradoxo é absurdo, pois lida com contradições, ou seja, a segunda afirmação entra em choque com a primeira e a desfaz. Se isto é certo do ponto de vista linguístico, nem sempre o é sob o prisma das interpretações. E a existência é repleta de paradoxos, que, ironicamente, fazem muito sentido.

   “Nunca mais” e “mais uma vez” se referem ao tempo, mas, se o tempo no dizer do compositor é invenção, os sentimentos conseguem compreender o choque de sentidos e reconhecem que muitas vezes só os paradoxos dão conta da enunciação.

 

Marcus Vinicius Quiroga