terça-feira, 30 de novembro de 2010

PARADOXOS

MELANCOLIA

Alvoroçada e desinibida,
debochada, arruaceira, a alegria
desfila seu samba-enredo pela avenida
na estridência de pandeiros
e tamborins.
Mágoas e aflições embarquem nessa viagem!
Animem-se macambúzios e sorumbáticos,
a alegria pede passagem,
suas tristezas chegaram ao fim.
Ai de mim que me espanto, abro caminho
e fico sozinho em meu canto.
Eu que sou assim desde meninno,
que amo o silêncio que no mundo existe,
que prefiro o dia nublado aos azuis,
o doce lamento dos saxofones
e dos violinos
à melancolia dos boleros e dos blues.
Que trago em mim esta alegria de ser triste.

Sílvio Ribeiro de Castro in 50 poemas escolhidos pelo autor (Editora Galo Branco)


Dias atrás postamos Confidência do itabirano, de Carlos Drummond de Andrade,onde encontramos os seguintes versos:"E o hábito de sofrer, que tanto me diverte/é doce herança itabirana." Agora no final do poema de Sílvio a expressão "esta alegria de ser triste". Em ambos os casos um contrassenso: Como se divertir com o sofrimento?
Como se alegrar com a tristeza?
Estamos diante de paradoxos linguísticos, mas que, poeticamente, fazem sentido ou passam a fazer sentido no texto. Se a subjetividade poética não os validasse, os sentimentos humanos e suas contradições o fariam.
No poema de hoje o fato de o paradoxo vir ao final do texto o valoriza, como se o texto se encaminhasse para esta confissão conclusiva, deixando ao leitor a reflexão
sobre tal verso.
Reparemso como o uso de certas figuras de linguagem (tão desdenhadas por parte da literatura so século XX)ainda surtem efeito. É claro que não devem ser usadas como enfeite, ornamento da linguagem, mas podem em 2010 ter funcionalidade estética.

Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A PERPLEXIDADE NOSSA DE CADA DIA

POETAR-SE

O poeta realiza em palavras
os sonhos do inconsciente
coletivo.
Arauto de uma época,
de dores e amores
que se tornam atemporais.
Palhaço de si mesmo.

O poeta sente e prevê,
pensa e sobrevive.
Humano como todos,
sem torres de marfim,
as musas se desvirginaram
e os mecenas faliram.
O poeta anda pelas ruas
e vai para o trabalho.

Mas, diante de uma folha em branco,
o poeta é um fingidor,
que ama e sofre,
letra após letra,
as inúmeras perplexidades
da vida nossa de cada dia.

Roseny Seixas




PERPLEXIDADES

a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo


e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sab~e-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo


e mais estranho ainda
que sabe-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

Ferreira Gullar in Em alguma parte alguma


Ambos os poemas nos falam, entre outras coisas, das perplexidades. E da consciência que temos dos fatos, pequenos ou grandiosos, que acontecem no nosso dia a dia. Poderíamos, então, dizer que se trata de uma consciência perplexa.
O artista, de um modo geral, é alguém que exercita a sua perplexidade e a transforma em matéria estética. O “fingimento’ do poeta nada mais é do que a realização, no mundo fictício das palavras, do que ocorre do lado de fora, no chamado mundo exterior.
A perplexidade diante de um acontecimento é o móvel para que o escritor produza sua obra, talvez na esperança de entender um pouco mais o que ocorre ao seu redor, ou como forma de resposta, na expectativa de um diálogo.
Na leitura conjunta destes dois textos, pensamos como as perplexidades servem de alimento para a nossa consciência. E o escritor precisa das duas: da perplexidade e da consciência. Embora elas sozinhas não façam dele um escritor, são necessárias para a mobilização de sua palavra e a construção de sua linguagem.
O homem é anterior ao escritor.

Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CONFIDÊNCIAS

Confidência do Itabirano


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade


CONFIDÊNCIA

Sou de Campos.
Por isso sou áspera
como a textura
da folha de cana.

Nasci em Campos.
Por isso sou plana
tal a plenitude
da planície.
Sou planície.

Por isso sou fluida
como o melado
escorrido entre ferros
e mãos encardidas de sol
e escravidão.

Sou moenda.
Por isso sou seca
como o bagaço
largado pelos currais.

Sou dos Campos dos Goytacazes.
Por isso quero beira de rio – Paraíba,
e vento nordeste
assanhando a cabeleira
dos canaviais.

Amélia Alves
(in 50 poemas escolhidos pelo autor, Galo Branco)

A autora cria o seu poema a partir da Confidência do Itabirano.No caso a doce poeta se diz áspera, graças ao “fingimento” literário, o que mostra que em um texto você pode usar máscaras à vontade.
Como exercício, faça a sua confidência, resgatando a sua cidade natal, ou o bairro de sua infância ou imagine um tipo de confidência que não precisa ser autobiográfica.
Faça mais de uma, supondo-se de um determinado lugar ou tendo tal profissão, como confidência de um insulano, de um funcionário público, de um bibliotecário ou outra qualquer.
Ela pode ser crítica, nostálgica, reflexiva, fantasiosa...

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

QUINTANAR, O VERBO Nº 2

QUINTANARES


Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintanares.

Manuel Bandeira]




QUINTANAR
(verbo sugerido por Cecília Meireles)

No pomar
deste quintal
tal poeta me pus
su
pus
anagramas
palavras
que brincam de quatro cantos
tal palíndromo
que guarda
a quinta-essência
o quintanar


Tudo se desfruta
para amar
qual em poema

vale a pena
o que se quintana
e se cultiva
no pomar da folha em branco

até que a vida
nos colha
na esquina
no instante

Sandro Magno




Dando continuidade aos textos de ontem, outras referências a Mario Quintana: o conhecido poema de Bandeira, que é uma homenagem explícita, e outro, com significações mais fechadas, de Sandro Magno. Recomendamos a leitura dos 4 textos, os dois de cada postagem.


Exercícios
1 – Oficialmente não existe a classificação de texto-homenagem, mas na prática reconhecemos que há textos que não são paródias, paráfrases, estilização nem pastiche, para usar a terminologia de Affonso Romano de Sant’anna. Fiquemos, então, com a proposta de definir este texto que não critica nem copia o modelo, mas no qual percebemos a intenção de reverenciar, de dialogar com outro autor.
2 – Aprendemos nas aulas de redação e nas oficinas literárias que a repetição é um defeito, e talvez o primeiro que vemos em um texto.Agora o que dizer da repetição no poema de Manuel Bandeira: é um defeito, por falta de imaginação ou de vocabulário, ou é um recurso estilístico expressivo? Justifique sua resposta.

3 – Bandeira fez o seu Mafuá do Malungo, em que ele pôs poemas de circunstância, dedicados a amigos, por ocasião de aniversário ou algo semelhante. Discuta o valor literário de tais poemas e, depois,pense se Quintanares faz ou não parte deste mafuá.

4 – Se você tem leitura suficiente da obra de Mario Quintana, diga o que entende por este verbo quintanar.



Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 23 de novembro de 2010

QUINTANAR, O VERBO


QUINTANAR

nada mais dura
tudo é pressa pura

tudo se acaba
se perde:
as pedras prédios impérios
só o que perdura
são as nuvens
o arco-íris e os vaga-lumes
das noites de primavera

o mais é literatura

Cairo de Assis Trindade



QUINTANA’S BAR
Num bar fechado há muitos, muitos anos, e cujas portas de aço bruscamente se descerram, encontro, quem eu nunca vira, o poeta Mario Quintana. Tão simples reconhecê-lo, toda identificação é vã. Em algum lugar - coxilha? montanha? vai rorejando a manhã.
Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento mágico: estrela-do-mar - ou Aldebarã?, tamanquinhos, menina correndo com o arco. E corre com pés de lã.
Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cúmplices, ele com seu talismã. Assim me fascinavam outrora as feitiçarias da preta, na cozinha de picumã.
Na conspiração da madrugada, erra solitário - dissolve-se o bar - o poeta Quintana. Seu olhar devassa o nevoeiro, cada vez mais densa é a bruma de antanho.
Uma teia tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que envelheceram ou que sumiram na semente de avelã.
Agora voamos sobre os tetos, à garupa da bruxa estranha. Para iludirmos a fome que não temos pintamos um romã. O poeta aponta-me casas, a de Rimbaud, a de Blake e a gruta camoniana.
As amadas do poeta, lá embaixo, na curva do rio, ordenham-se em lenta pavana, e uma a uma, gotas ácidas, desaparecem no poema. É há tantos anos, será ontem, foi amanhã? Signos criptográficos ficam gravados no céu eterno – ou na mesa de um bar abolido, enquanto debruçado sobre o mármore, silenciosamente viaja o poeta Mario Quintana
Carlos Drummond de Andrade
EXERCÍCIO

Leia os textos dos dois poetas que homenageiam Mario Quintana e veja as diferenças de linguagem, observando o poético e o prosaico.

Diga o que justifica o título no primeiro texto.

Faça um comentário também sobre a questão das rimas.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

AS INTERPRETAÇÕES



EXEGESE


Você quer se esconder, então se mostre.
Diga tudo que sabe sobre a vida.
Conte a sua experiência nos negócios,
proclame seu valor de parasita.
e deixe que discutam nas casernas
o seu bendito fruto entre as melhores
famílias desta terra.
Depois esconda tudo num poema
e fique descansado: ninguém lê.
Se ler, começam logo a ver navios
e achar que tudo é poetagem, símbolos,
desejos reprimidos,
psicanálises,
o diabo a quatro.
O poema não é uma caverna
sigilosa, com sombras tautológicas
nas paredes.
O poema é simplesmente
a sombra sem caverna, o vulto espesso
de si mesmo, a parábola mais reta
de quem escreve torto,
como um deus
canhoto de nascença.


Gilberto Mendonça Teles ( in Plural de Nuvens)


Este poema nos remete à questão da interpretação e nenhuma interpretação é isenta. Toda leitura traz as marcas do sujeito: na linguagem, na teoria, na abordagem, nas preferências temáticas e, principalmente, nos desvios.
Os versos de G. M. Teles são irônicos e jogam com os sentidos, exigindo releituras. Os seguintes:
"Depois esconda tudo num poema/ e fique descansado: ninguém lê.” nos fazem pensar no conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe, quando um personagem esconde uma carta com moldura na parede.
Se as referências implícitas do texto esperam do leitor certo conhecimento para decifrar as metáforas, seu bom humor, por outro lado, libera a leitura para o prazer da linguagem coloquial e o espírito crítico, embora cada um que fale sobre “seus símbolos, seus desejos reprimidos.e sua poetagem’.
A semelhança dos psicanalistas, os críticos literários e ensaístas também veem sentido em tudo, também tudo interpretam. Mas não há como ser de outro modo. E cabe ao escritor escrever torto a parábola reta, e ao leitor a compreensão das palavras movediças.
As exegeses tanto falam do objeto em estudo quanto de quem o estuda. Daí podermos fazer a exegese das exegeses. Mas este não o nosso caso no momento. Só queremos nos aproveitar da linguagem lúdica deste poema e brincar também com as palavras, com inveja do verbo to play, quer seria muito mais adequado em sua plurissignificação.


Marcus Vinicius Quiroga

domingo, 21 de novembro de 2010

O CONCEITO DO LITERÁRIO

CONCEITO DE POESIA

Viajar no reino das palavras em profusões de música, na raiz do idioma,
inventário genético no cérebro do índio das origens.
viajar nos códigos proliferados do caos babélico,
nos morfemas fragmentados em metaplasmos,
desinências alteradas,
agitações febris de premonição,
o índice perdido na voracidade.
A poesia, eletricidade das estrelas na ossatura lexical,
rompe o silêncio no exílio das entranhas do arquétipo
e atravessa a estação sideral.
Poesia: retorno ao cristal das metamorfoses,
sequência do calendário infinito.


Márcio Catunda


Todo poema traz em si um conceito de poema. Todo texto é uma escolha entre infinitas possibilidades, logo há sempre uma afirmação estética, que não precisa ser teórica ou metalingüística.
“Feito” o texto, propomos que nos perguntemos por que isto é um poema, ou um conto, ou uma crônica...em suma, por que é um texto literário. Se não soubermos responder, é sinal de que ainda não sabemos o que estamos fazendo. Neste caso, é evidente a necessidade do estudo, da oficina, da leitura.
A diferença entre um escritor é alguém que escreve é que o primeiro tem consciência do trabalho que faz. Assim como cantar não nos torna cantores, escrever não nos torna escritores. Portanto, é preciso que tenhamos intenção estética em nossos textos, como, por exemplo, a de que ele carrega em si, independente de nosso propósito, um conceito de literatura.
Em Conceito de poesia (extraído de Verbo Imaginário) Márcio Catunda, nos versos finais, nos remete para a ideia de metamorfose. Eis aí o conceito: literatura é metamorfose, transformação de sentidos, renovação da linguagem corrente... Esta mudança, que normalmente ocorre com a conotação, pode, em alguns momentos históricos, dar-se de modo contrário. Se certas conotações tornam-se gastas com o uso, a denotação pode ser a maneira mais criativa de escrevermos. Dizemos isto só para que tenhamos em mente que não há regras para a operação poética. Há, sim, a presença da metamorfose em todo objeto de arte.


Marcus Vinicius Quiroga

sábado, 20 de novembro de 2010

AS ENTRELINHAS DO TEXTO

GRAAL


Há uma outra leitura
dentro de cada poema.
Não se contente nunca
com um sentido apenas.

Há na superfície mesmo
escondida nas obviedades,
nas tônicas, nos termos,
nas vírgulas, na sintaxe,

uma pulsação que exala
o mistério das sensações,
uma alguma outra fala
que salta de formas e sons.

Sentidos muitos se tramam
em teias, em redes, impulso
onde o que nos humana
goza ao tocar o oculto.

Eduardo Tornaghi


Muitos textos permitem vários níveis de leitura, que acontecerão de acordo com o repertório (em seu sentido mais amplo) do leitor.Nenhuma leitura de um bom texto é total e definitiva, o que justifica as releituras feitas no dia seguinte ou daí a dez anos. Falamos em bom texto, sabendo que este adjetivo “bom” guarda em si muita subjetividade e circunstância.
Geralmente textos mais elaborados e sofisticados exigem as releituras, porque contêm esta “alguma outra fala”, estes sentidos cifrados e ocultos. Isto não quer dizer que textos mais herméticos sejam melhores do que os menos. A questão da comunicabilidade não é o bastante para definir a qualidade.
Grande sertão:veredas é um texto difícil, mas não por ter significados escondidos. Seu enredo, aliás, é bastante simples e nos remete à tradição de histórias de violência no interior do país, com seus coronéis e jagunços.Sua complexidade é de outra ordem que não a narrativa.
Clarice Lispector, por sua vez, usou um vocabulário simples e pequeno para fazer uma obra com profundidade. Damos estes dois exemplos para mostrarmos que o tema da comunicabilidade do texto é muito rico e merece muito mais discussão. No momento, queremos falar dos “sentidos muitos que tramam em teias e redes”.
Noel Rosa, que faria cem anos agora, já disse em Feitio de oração que “samba não se aprende no colégio”. Bem, algumas coisas se aprendem; outras, não. Como fazer um texto repleto de sentidos, como elaborar redes de significados, como fazer obras polissêmicas, talvez não. Mas a boa e intensa leitura talvez nos habilite para isto, caso seja o nosso propósito.
Há escritores que gostam de escrever nas entrelinhas e, do outro lado, leitores que apreciam esta leitura, este decifrar de intenções. Caso você seja um deles, leia o texto do Tornaghi (e o livro Matéria de rascunho, do qual extraímos o poema) e releia outros, que sempre encontrará índices, pistas, sutilezas, espelhos, analogias.

Marcus Vinicius Quiroga

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A ALQUIMIA DA PALAVRA

ALQUIMIA

O poema flui
como água corrente,
tal um rio calcário,
submerge e torna a ser.


Da alquimia
do meu coração
deságua grande amor.

Desligo-me das neuroses,
procuro minha alegria
[minha marca registrada]
e acho
meu caminho de volta
tecendo poemas.


Alice Spíndola

Como hoje a escritora Alice Spíndola desembarca no Rio, nada mais justo do que nos lembrarmos de seus textos. E pensamos sobre a alquimia da poesia, que por definição é algo que transforma e nos transforma.
Quando lemos certos poemas, podemos detectar o momento em que o poético se instaura, quebrando a linearidade da denotação, desviando o curso das águas. Em uma leitura “normal”, estamos desatentos para a construção do texto, interessados apenas em sua fruição, mas, como poetas, precisamos aprender a reconhecer os momentos alquímicos do texto para saber criá-los.
Atenção precisamos ter também para perceber o que está submerso (tal um rio calcário) nas palavras, afinal o poema, como adverte Alice, é um tecido, uma tapeçaria, que fazemos e refazemos.
Sabemos que o exercício de poeta exige que, para elaborar momentos alquímicos em seus versos, seu olhar se disponha a identificar os momentos alquímicos da vida, no meio da correnteza do dia a dia.
E, como estamos em página de polissemia, lembremo-nos ainda que todo texto não só tem um olhar do mundo, como também uma troca de olhar com o leitor, este cúmplice.
Marcus Vinicius Quiroga

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

ARTE LACRIMOGÊNEA

Rosa Rilke Raimundo Correia


Uma pálpebra,
Mais uma, mais outras,
Enfim, dezenas
De pálpebras sobre pálpebras
Tentando fazer
Das minhas trevas
Alguma coisa a mais
Que lágrimas

Paulo Leminski

Vejamos aqui o texto de Leminski como mote para se pensar sobre a literatura lacrimogênea. Muitos leitores usam as lágrimas como critério de apreciação de um texto: quando mais choram, melhor o texto.
Respeitamos, é claro, as preferências e as motivações particulares, mas, ao mesmo tempo, chamamos a atenção dos escritores para suas opções estéticas. Um texto não precisa usar um vocabulário que se refira às emoções para ser emotivo. E temos que ter cuidado para não cairmos na grandiloquencia anacrônica, no romantismo derramado, na clicherização dos sentimentos.
Um texto não deve ser feito para pálpebras, mas para olhos.

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

REUNIÃO
Antonio Carlos Secchin

Aqui estamos nós
unidos pelo sangue
e dispersos pela vida.
Sabemos de onde viemos,
mas não sabemos nossa saída.
De Antônio e Catarina
herdamos gestos, sonhos, corpos e voz.
Muito sabemos deles,
e pouco sabemos de nós.
Aqui estamos todos
- tios , sobrinhos, primos, avós – ,
corrente entre um ontem vivo
e um amanhã apressado,
frente a frente
com o futuro que nos chama,
cara a cara
com a chama de um passado.
Agora atravessamos juntos
Cachoeiro de ItapeSecchin,
esta estrada tropical da Itália
que desemboca em você e em mim.
E se recompondo o que nós fomos
este instante cintilar dentro de nós
num sopro que a vida não apaga
mesmo sozinhos não estaremos sós.




SABIÁ
Tom Jobim e Chico Buarque

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De um palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor Talvez possa espantar
As noites que eu não queira

E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
E é pra ficar
Sei que o amor existe
Não sou mais triste
E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar
E a solidão vai se acabar


VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


O X DO PROBLEMA
Noel Rosa

...................................................
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema
....................................................
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do Mangue
Não vive na areia de Copacabana


VOLTASTE
Noel Rosa

Voltaste
Para mostrar ao nosso povo
Que não há nada de novo
Lá no Centro da cidade
Voltaste
Demonstrando claramente
Que o subúrbio é ambiente
Que completa a liberdade




Nestes textos, temos a questão do lugar. Paralela à busca da identidade, há a busca do nosso lugar (a nossa ilha ou nosso continente). Em muito casos, as duas buscas se confundem e o reconhecimento da identidade se dá com o reconhecimento do lugar.
A utopia também é subjetiva, como vemos no bem humorado Pasárgada, cuja verso-título tornou-se um refrão, embora cada um tenha (ou imagine) a sua própria pasárgada. E o que é a utopia, este não-lugar? Talvez a utopia possa ser também algo fora do lugar.
De qualquer forma, este é um tema (diríamos mais do que um tema) presente em toda a literatura. Na primeira letra, Noel valoriza a relação “atávica” com o bairro do Estácio, berço do samba, pois, embora fosse (e ainda é) um bairro sem status, era a preferência do eu poético, porque lá ele tinha suas raízes. E em Voltaste, ele defende o subúrbio, área da cidade (e em particular a Penha) tão cantada por ele, dando sua visão (versão) do que é o subúrbio.
Já a letra de Chico fala da volta de um exílio para o país, no final de 60. Mas, lembrando-nos do poema de Quintana, a sua paródia da Canção do exílio, perguntamo-nos se não há outros exílios, dentro do país. Não sair do Estácio pode ter semelhanças com voltar de um exílio.
Revendo os textos de Chico e o de Secchin, vemos que ambos falam de solidão e, de certa forma, de maneira esperançosa, Um acredita que ela vai acabar; e outro, mais filosófico, relativiza a solidão no verso-chave (mais que chave de ouro): “mesmo sozinhos não estaremos sós”. O não-estar-só, no sentido de Reunião, nos remete à cidade particular de ItapeSecchin que, como Pasárgada, todos têm algo semelhante. A solidão (em seus vários sentidos) parece ter uma relação direta com o lugar em que estamos, pois há lugares em que nos sentimos mais ou menos sozinhos do que em outros. Isto sem referirmo-nos a solidões portáteis, que são carregadas para todos os lugares.
O peregrino, o errante, o nômade são personagens que talvez estejam apenas voltando para ItapeSecchin, para Pasárgada, para o Brasil, para o Estácio, para o subúrbio, enfim para si mesmo, esteja ele lá onde estiver.
Analistas gostam de fazer comparações com lugares internos e externos, traçando paralelos, por exemplo, com a arrumação das ideias e a de armários, no intuito de pregar sempre a elaboração e a organização.
Já os poetas, à revelia, muitas vezes guardam as coisas do lado de fora.


Marcus Vinicius Quiroga

Exercícios

1 – Faça um poema, construindo a sua Pasárgada, em referência a este famoso poema de Bandeira. Revisite o lugar “paradisíaco” do poeta.

2 – Faça um texto (poético ou prosaico) que trate da relação do homem com o lugar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

VERBO GULLAR

VERBO GULLAR

Apenas raiz,
uma parte de ti
está em São luis;
uma outra parte;
a que se partiu
e semeou poemas
pelo mundo afora.
ora lembranças de Atenas.
oa lâmina que esfola;
espada e flor
nascendo em cada esquina,
uma parte amor,
outra parte paladina.
e é ciência e arte
fundir uma parte
na outra parte.
é ser poeta ferreiro
assim desintegrado
pelo mundo inteiro,
não mais ser Ferreira,
não mais ser Gullar,
apenas estrela,
em todo lugar,
e verbo imortal conjugando a vida
além da luta corporal

Alex Brasil



O poeta maranhense Alex Brasil nos ensina que Gullar é verbo. De primeira conjugação,
como a desinência indica. Com a leitura de sua obra, podemos perceber que pode ser também adjetivo e, mais que tudo, substantivo.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

VIVIANES






Há anos um amigo me convidou para batizar a sua filha e, para minha surpresa, disse que eu poderia escolher o nome. Então me veio na hora Viviane. É claro que, em sendo eu Vinicius, um analista veria na escolha uma autoalusão camuflada, já um poeta uma aliteração. Esta é uma das muitas diferenças entre analistas e poetas
Mas é de outra Viviane que trato hoje, a Mosé. De seus múltiplos talentos, ficamos com a poesia. E temos aqui um exemplo feliz de alegoria, para estudarmos a área semântica determinada pela autora para fazer as comparações e, através de uma suposta receita, pensar sobre a conduta humana. A propósito, lembrei-me agora de que esta Viviane é poeta e analista, além de filósofa, atriz etc



RECEITA PRA LAVAR PALAVRA SUJA

Mergulhar a palavra suja em água sanitária,
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.
Existem outras e a palavra amor é uma delas
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
—que atende pelo nome de amargura—
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
Á noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

Viviane Mosé

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

SOBRE EMOÇÃO ATLÂNTICA




Tributo poético ao Rio de Janeiro


Emoção Atlântica, de Márcio Catunda, é uma celebração da poesia e da cidade do Rio de Janeiro Sem se alienar dos problemas sociais tão visíveis no dia a dia desta cidade, o poeta opta por fotografar os encantos da metrópole. E, sem fazer poesia para turista, elabora cada poema como se fosse um cartão-postal, um cartão de metáforas, reveladas por sua câmera-caneta.
Em não tendo nascido na cidade, o olhar do poeta é o do estran-geiro que lida com o objeto de seu desejo com paixão e erotismo. Em seus versos pulsa este desejo pela cidade-mulher. E aqui lembramo-nos da canção Cidade mulher de Noel Rosa, carioca de Vila Isabel, e de A cidade mulher, livro de crônicas de Álvaro Moreyra, carioca de Porto Alegre, só para dar dois exemplos da tradição de tratar a cidade como sendo feminina.
Em tom de ode, a obra se inicia com poemas de versos longos, à Whitman, em um ritmo dinâmico que arrasta o leitor pelas paisagens do Rio, apresentando-as, agora, pela alquimia da palavra. O texto, de extrema variedade metafórica, é matéria que se oferece ao olhar do leitor para que ele, aos poucos, reconstrua, esta cidade cuja natureza foi feita para o deleite dos que a veem.
O livro traça, portanto, um mapa de seus bairros, que vão surgin-do espontaneamente, à medida que o poeta vai visitando seus escritores. Catunda enumera vários: Gilberto Mendonça Teles, Affonso Romano de Sant’anna, Laura Esteves, Tanussi Cardoso, Ricardo Alfaia, Elaine Pauvolid, Thereza Motta, André Seffrin, Alexei Bueno e Torquato Neto, entre outros.
Trata-se, assim, de um livro de encontros, encontro com alguns poetas da cidade (e muitos, é claro, são de outros estados) e com as ruas de seus bairros. Ainda que não faltem referências a pontos turísticos tradicionais, como Pão de Açúcar, Corcovado ou Largo do Boticário, o poeta se dirige também às livrarias, aos locais dos eventos poéticos, e às casas onde moraram seus artistas e intelectuais, como Tom, Vinícius ou Assis Brasil. A viagem é múltipla: literal por suas ruas; literárias por seus escritores, e lírica por suas lembranças.
A referência exaustiva a inúmeros bairros (Leblon, Ipanema, Copacabana, Gávea, Cosme Velho, Laranjeiras,Tijuca,São Cristóvão, Bo-tafogo, Flamengo, Lapa, Gávea, Catumbi e Santa Teresa) vai da Zona Norte à Sul, passando pelo Centro, identificando, deste modo, para quem é de fora, não só áreas de encantamento natural, mas também do movimento literário que hoje ocorre em toda a cidade. No poema Exortação, o verso “Sairei pelas ruas com minha utopia’ explora as conotações da palavra utopia: lugar nenhum e ideal inatingível, de impossível realização. Ora, a cidade é o lugar definido pelas muitas imagens visuais, tornada real pelas citações de bairros, de ruas e até mesmo, mais especificamente, de cinemas (Roxy) e livrarias (Leonardo da Vinci). Mas é simultaneamente um lugar que só se realiza pelas lentes seletivas do poeta-fotógrafo que a retrata, tanto em fotos panorâmicas, quanto em 3 x 4.
Há, então, uma cidade feita de cimento, encravada no real e outra, de palavras, utópica e particular. O Rio de Janeiro de Márcio Catunda é o território da esperança, em que o poético predomina. Em seu caso, o lema latino do carpe diem parece apropriado, visto que o eu líri-co desde Noturnos declara que “Desfrutar o instante é um valor permanente./é fluir absorto, sem perceber o peso da vida./Minha única habilidade.” Tempo e espaço, portanto, se fundem em um união que chamaríamos, paradoxalmente, de atemporal, pois é um tempo da subjetividade, e que só ocorre nesta cidade mítica.
No poema que dá título ao livro, ainda afirma que “não haverá instante/em que eu não esteja pleno de lirismo.” Isto significa que o mapeamento histórico-geográfico feito pelos versos é mais do que tudo um mapa lírico em que os objetos (Pão de Açúcar, Corcovado, Lagoa Rodrigo de Freitas) são recriados pelo vocabulário, surpreendente pela mistura de registros diversos, e pela imagística, sempre sensorial, do poeta.
Este livro certamente faz o mesmo que a cidade com seus morado-res e visitantes, sejam eles de onde forem: transforma todos os seus leitores em cariocas. Cariocas, não no sentido de casa do branco, como usavam os indígenas; mas, no sentido histórico, de casa de todas as cores. Cidade e livro de apelos visuais, que, de frente para o mar, têm no ritmo de suas ondas e de seus versos a medida e a desmedida de sua poesia.


Marcus Vinicius Quiroga



ARTE POÉTICA

A poesia, a mais libertina das artes,
dá cambalhotas, dança no trapézio,
veste andrajos nos salões.
Só tem por limite o ilimitado.
Não tem arestas nem se prende à circularidade.
salta sobre as muralhas do jardim de Apolo.
A Dionísio faz curvas, cerimonioso.
tem de Narciso o inatacável riso.
O lampejo fluido da música
e a concretude da iconografia.
Alimenta-se da experiência
e quanto toca em si transforma.
Bebe a luz do nada e vibra nas cordas da essência,
em ressonância de nervos e neurônios.


Márcio Catunda





quarta-feira, 10 de novembro de 2010

TEXTO COM DIÁLOGO



Há poucos dias postamos duas letras de música, Sinal fechado e Amigo é pra essas coisas, dando exemplo do uso do diálogo para a construção do texto. Hoje nos lembramos dos tempos de Bob Dylan, Joan Baez e Cat Stevens e trouxemos a letra de uma canção emblemática deste último. Além de mostrar um diálogo, representa o eterno conflito de gerações, ou seja, tem também uma estrutura baseada em opostos como vimos em outras postagens.
A oposição básica entre os verbos to settle down e to go away revela os dois movimentos de pessoas em momentos diferentes, e não necessariamente de pai e filho, ou de velho e jovem. Independente da idade, podemos sempre escolher entre um verbo e outro.



FATHER AND SON
Cat Stevens

It's not time to make a change
Just relax, take it easy
You're still young, that's your fault
There's so much you have to know
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I'm happy

I was once like you are now
And I know that it's not easy
To be calm when you've found
Something going on
But take your time, think a lot
I think of everything you've got
For you will still be here tomorrow
But your dreams may not

How can I try to explain
When I do he turns away again
And it's always been the same
Same old story
From the moment I could talk
I was ordered to listen
Now there's a way and I know
That I have to go away
I know I have to go

It's not time to make a change
Just sit down and take it slowly
You're still young that's your fault
There's so much you have to go through
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I'm happy

All the times that I've cried
Keeping all the things I knew inside
And it's hard, but it's harder
To ignore it
If they were right I'd agree
But it's them they know, not me
Now there's a way and I know
That i have to go away
I know I have to go


PAI E FILHO

Não é tempo de mudar,
apenas relaxe, vá com calma
Você ainda é jovem, esse é seu problema,
há muita coisa que você tem que saber.
Encontre uma garota, se afirme,
se você quiser, pode casar
Olhe pra mim, estou velho,
mas sou feliz.

Eu já fui como você é agora,
e eu sei que não é fácil
ficar calmo quando você
percebeu algo acontecendo.
Mas vá com calma, pense muito (por quê?),
pense que tudo o que você já conseguiu
para você vai estar aqui amanhã,
mas seus sonhos talvez não.

Como eu poderia tentar explicar,
quando o faço ele ignora
É sempre a mesma coisa,
a mesma velha história.
No momento em que eu pude falar,
fui obrigado a ouvir.
Agora há um caminho, e eu sei
que eu tenho que ir embora,
eu sei que tenho que ir.

Não é tempo de mudar,
apenas sente-se, vá devagar,
você continua jovem, esse é o seu problema,
há muita coisa ainda que você tem que enfrentar.
Encontre uma garota, se afirme,
se quiser, você pode casar,
olhe pra mim, eu estou velho,
mas sou feliz.

Todas as vezes que eu chorei
Mantendo todas as coisas que eu sabia dentro
E é difícil, mas é mais difícil
Ignorá-la
Se eles estivessem certos, eu concordaria
Mas são eles que sabem, não sou eu
Agora há uma maneira
e eu sei Que eu tenho que ir embora
Eu sei que tenho que ir


NOTA: A tradução tirada da Internet nem sempre é feliz.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A ESTRUTURA DUAL



AS LABAREDAS E AS CINZAS

Evanescentes figuras
de meu anteontem:
houve tudo?
Nada mais haverá?

Evadem-se as labaredas fugazes do amor.
Dói a nostalgia dos planos nas madrugadas.
As cinzas dos sonhos ainda estão quentes!

Que apelo de horizontes te convencem
- mágicas certezas do amanhã-
a destruir as certezas do agora?

Rui Galanternick


Como falamos na última postagem de estrutura dual, temos hoje outro exemplo. Trata-se do poema As labaredas e as cinzas, publicado no livro Fundamental, dedicado a mim por gentileza de seu autor.
Se labaredas e cinzas se opõem, opõem-se também o pretérito houve ao futuro haverá, e as palavras amanhã e agora. Neste texto a oposição maior é a do tempo, já que a ideia da efemeridade das coisas é dada pelos adjetivos evanescentes e fugazes e pelos verbos evadir-se e destruir.
Temos, lado a lado, a insinuação do amor passageiro, que um dia acaba, desfaz-se em cinzas, e a presença dos sonhos, ainda quentes (malgrado o tempo que passou).
Curiosamente, neste poema, a mesma palavra se confronta, pois “certezas” do amanhã é a oposição para certezas do agora, o que, ao fim e ao cabo, faz de tudo incertezas. Talvez esteja aí o momento mais criativo do texto: criar um choque de sentidos com a repetição da mesma palavra.
E que todos os textos nos deem esta sensação, quando o tocamos com nossa leitura, a de que ainda estão quentes, como sinal de que seu autor saiu dali há bem pouco tempo.

Marcus Vinicius Quiroga

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

PESSOANAS




A obra de Fernando Pessoa tem influenciado inúmeros poetas e é uma das maiores referências em literatura de língua portuguesa, fazendo parte do nosso repertório comum. Hoje temos três textos dos poetas Eduardo Tornaghi, Carlos Drummond de Andrade e Paulo Henriques Britto, que estabelecem uma relação intertextual, de ho-menagem e reverência.
Propomos a leitura cuidadosa dos textos e depois, como exercício, a elaboração de um texto também pessoano.


SONETILHO
per Pessoa

Como Pessoa, eu não sei
se penso o que sinto ou
se não sinto o que pensei

confusão bem portuguesa
de quem não sabe o que é
come sal à sobremesa
escreve usando talher

só, ocupa todo o espaço
ao encolher-se de medo
não sabe que é o cansaço
que não o deixa dormir cedo

Já que não sei o que sinto
como Pessoa eu direi
toda verdade é que eu minto

Eduardo Tornaghi


SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA
Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.
Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.
Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,
eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

Carlos Drummond de Andrade


PESSOANA


Quando não sei o que sinto
sei que o que sinto é o que sou.
Só o que não meço não minto.

Mas tão logo identifico
O não-lugar onde estou
decido que ali não fico,

pois onde me delimito
já não sou mais o que sou
mas tão-somente me imito.

De ponto a ponto rabisco
o mapa de onde não vou,
ligando de risco em risco

meus equívocos favoritos,
até que tudo que sou
é um acúmulo de escritos,

penetrável labirinto
Em cujo centro não estou
mas apenas me pressinto

mero signo, simples mito

Paulo Henriques Britto


O ELEMENTO DOIS






Saiu uma nota no jornal insinuando que o texto Metade seria plágio de Traduzir-se, fato de que discordamos. Os dois lidam com uma estrutura dual e palavras sinônimas, metade e parte, mas parecem ter temáticas e propósitos diferentes. Semelhanças deste tipo ocorrem com frequência, sem que um dos autores tenha lido o outro. E, neste caso, Ferreira Gullar e Oswaldo Montenegro são autores acima de qualquer suspeita, cujas obras são bem maiores do que um poema ou uma letra.
A nota serviu para mostrarmos os textos e chamarmos a atenção para a construção poética, que, afinal, é sempre o que nos interessa. A estrutura dual (repetimos) de Traduzir-se aparece em outros textos da obra de Gullar e em seu recente livro Em alguma parte alguma é uma técnica recorrente, que mereceu de nós um estudo, A poesia em toda parte de Em alguma parte alguma, texto extenso para a proposta de nosso blog, que pode ser lido na revista Plural, da Oficina Editores.
Na letra de Montenegro a estrutura feita de pares opositivos se encaminha até a última estrofe, e, no momento do clímax, a oposição se defaz e as duas metades agora se igualam, porque são o amor. A interrupção da oposição busca o inesperado, o efeito de surpresa, sugerindo, talvez que só sejamos inteiros no amor.
Já no texto de Gullar o impasse não se desfaz e a oposição requer uma tradução (ideia chave do poema) permanente. Sua pergunta final mostra que a dualidade humana ali não foi solucionada, logo cabe ao eu poético a “arte” (com suas conotações) de traduzir-se.
Propomos ao leitor que preste atenção ao uso constante da apresentação opositiva nos textos, como forma de valorizar um dos termos da oposição, o que normalmente ocorre no final. E, como exercício, faça também um texto em que haja pares que se contrariem como elemento estruturador de sua forma literária.


Marcus Vinicius Quiroga







METADE


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo
seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Oswaldo Montenegro

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

domingo, 7 de novembro de 2010

INSPIRAÇÃO



INSPIRAÇÃO

De onde surge este canto?
De onde vêm estes pássaros,
bêbados, trôpegos,
a rufar as asas
enlouquecidamente,
em meu peito, em minha mente?

De onde nascem, a voar, estes pássaros,
insistindo em todas as direções,
buscando, incessantemente,
alguma saída urgente?

E onde dormem os sonhos
que eles acordam, aos cantos,
para então, loucos pássaros que são,
tornados palavras,
ganhar vida e liberdade,
fora de mim, onde?

Ana Mignone




Também os anjos mudam de poleiro
de vez em quando, se rareia o alpiste
indeglutível que é seu alimento.

Porém você não se conforma, e insiste,
procura em vão possíveis substitutos
que tenham o efeito de atrair de volta

esses seres ariscos, esses putos
que se recusam a ouvir os teus apelos,
como se fossem mesmo coisas outras

que não a tua própria vontade de tê-los
sempre a postos, em eterna prontidão,
a salpicar na tua boca ávida

o alpiste acre-doce da ( com perdão
da péssima palavra ) inspiração.

Paulo Henriques Britto


Nos dois textos acima, vemos pássaros e anjos, seres alados, representando a inspiração. O mood dos dois é evidentemente diverso. Enquanto Ana Mignone se mostra lírico-reflexiva, Paulo Henriques se faz debochado e crítico. Ambos, no entanto tratam da mesma questão: a inspiração. Esta palavra é sempre polêmica, porque sua noção faz com que pensemos em coisas bem diferentes. Não podemos, portanto, aceitá-la ou negá-la simplesmente, mas discuti-la, sem esgotá-la.
Aqui no caso nos despertou atenção a proximidade das imagens de pássaros e anjos, usadas pelos poetas para falarem da mesma ideia. É bom lembrar também que tais imagens sugerem voo, fuga, agitação, pois suas asas sempre são associadas a permanente movimento. Ou seja, a “inspiração’’ é algo que escapa de nós de uma hora para outra.
A princípio, a palavra nos remete a uma visão mais tradicional da literatura, e particularmente da poesia, não sendo raro críticos dizerem, à guisa de elogio, que tal poeta faz versos muito inspirados. Embora no século XX a palavra (ou sua concepção) venha rareando, ainda é moeda em circulação, uma vez que é sempre difícil defini-la. De qualquer forma, dizemos que há momentos (os inspirados) em que nos sentimos mais habilitados à criação, e outros em que isto não acontece.
Queremos também citar o conceito de “correlato objetivo”, de que falava T.S. Eliot. No primeiro texto, pássaro é o termo concreto para designar a ideia abstrata de inspiração, sendo mais fácil escrever e criar imagens sobre pássaros do que sobre a inspiração. Nosso intuito é, pois, mostrar como podemos usar o “correlato objetivo”. Para melhor compreensão, leiam o texto Hamlet e os seus problemas, de Eliot.

Marcus Vinicius Quiroga

sábado, 6 de novembro de 2010

A FUSÃO LÍRICA



LEMBRANÇA DO RIO

Da janela da cozinha
Eu via
O rio
Ou era o rio que me espiava,
Espichando o dorso de lama,
Cobra
De couro liso.

Enquanto lavava louça,
O rio,
Escorregadio,
Levava nas águas sem espuma,
Os meus desejos,
Sentimentos
E desvios.

De vez em quando,
Desprendia-se da árvore
Um bugio,
O rio tremia,
A pele eriçada
Num calafrio.

Eu via
E pensava:
Sou moça,
Não vou morrer
Se me atiro
Nesse rio;
Não há dor,
Queimadura,
Lamento
Que ele não cure,
O seu balbucio
É paz e esquecimento.

Ó substância úmida!
Ó existência precária!
Meu corpo escoa
Como água
Como se fosse
Meu próprio rio

Raquel Naveira




A maioria dos poemas de nossa literatura pertence ao gênero lírico. Desta forma, à semelhança do senhor Jourdain, em O burguês fidalgo, de Molière, muitos de nós talvez façamos textos líricos, sem que o saibamos. Mas este não é o caso da professora Raquel Naveira, que em Lembrança do rio, oferece-nos um lirismo sem sentimentalismos, sem piequices e sem os clichês que se cristalizaram no gênero. Como há o predomínio de textos de temática amorosa, a ocorrência do lugar-comum é frequente, pois se trata de tema que leva muitas vezes o autor a pensar no destinatário de seu poema, e não no poema em si.
Aqui temos o eu poético defronte de um rio que, animizado já primeira estrofe, alterna a ação de olhar, como se fosse ele também o sujeito do discurso (“Eu via/ O rio/Ou era o rio que me espiava”). Depois os verbos paronomásicos lavar/levar igualam outra ação em que se faz presente o elemento água. Este contínuo movimento de identificação do eu poético com o seu objeto, o rio, atinge o momento máximo na símile da última estrofe (“Meu corpo escoa/Como água/Como se fosse/Meu próprio rio”).
Temos, então, um bom exemplo da fusão lírica: o termo comparativo como faz a ligação entre o eu e o rio, agora já um só ser, tanto que o corpo do eu “escoa”, atributo que seria próprio do rio.
Vários verbos de ação (olhar, espichar, levar, tremer e curar) descrevem o rio, correspondendo à expectativa que se tem de um rio, mas ele, ao mesmo tempo, é a inação, ou seja, “paz e esquecimento”. A subjetividade do eu faz com que seu objeto adquira significados outros, capaz até de levar (ou lavar?) coisas abstratas como sentimentos e desejos, afinal um rio é normalmente, como os homens, feito de desvios.


Marcus Vinicius Quiroga



quinta-feira, 4 de novembro de 2010

EXERCÍCIO DE INTERTEXTUALIDADE

PENSANDO MURILO MENDES

último espasmo da lua
e os sumaríssimos suspiros.
trigonometria água lustral anjos cubistas
relógio de fogo.
algo enlouqueceu
nos pássaros do olhar.
o bonde e o violão se espandongam
rangem no sangue
entardecer do tempo.
pensamento a soabrir a pálpebra
para fora da luz
antiuniverso da matéria
sem palavras.
orfeu hidrofeu catastrândula.
entre os mortos
e a congestão nasal
passeia um sacerdote antiquíssimo
e a sábio indiferença
do abismo oval.
tudo enlouqueceu
às vésperas do sonho.
todos os telhados se evaporaram
e a infância.
restou aquele menino magro
mirando a tristeza infinita
dos meteoros sem deus.
Afonso Henriques Neto


Exercício

Leia o poema de Afonso Henriques Neto e o compare com a poética de Murilo Mendes. Diga de que forma o texto justifica a homenagem ao escritor mineiro. Este é um exemplo de intertextualidade, que poderíamos chamar (a nomenclatura não existe) de poema-homenagem, que difere da paródia, por não ter intenção crítica, e da paráfrase ou do pastiche, por não se pretender imitação. Busca, sim, usar elementos do texto (ou do autor) homenageado, valendo-se destas semelhanças para tornar presente um texto em outro, como uma reverência, uma confissão de reconhecimento literário. Pensem, pois, Murilo Mendes e Afonso Henriques Neto.

Marcus Vinicius Quiroga

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

REPERTÓRIO 2


PEDRO ALMODÓVAR

Desço a ladeira
dos meus sonhos
de salto alto.
Requebro bamboleante
nos paralelepípedos
de um filme real
em preto e branco.

Um dia ainda
sairei dos nervos.

Virarei Almodóvar.

Marcia Barroca


O poema Pedro Almodóvar, extraído do livro 50 poemas escolhidos pelo autor, da editora Galo Branco, mostra também a questão do repertório. Para apreciá-lo é requisito conhecer os filmes do cineasta espanhol, que tem preferência pela criação de personagens femininas fortes e trabalha sempre com excelentes atrizes. Alguns de seus filmes se aproximam do universo nelsonrodrigueano, para fazermos um paralelo didático e inicial. Na segunda estrofe temos uma referência à película Mulheres à beira de uma ataque de nervos, um de seus primeiros sucessos no Brasil.
E na última estrofe a metáfora “Virarei Almodóvar”. Ora, como entendermos esta equação? O que é ser Almodóvar? As respostas são múltiplas, mas todas saem do rico universo imagístico do cineasta, que se caracteriza pelo grotesco, pelo acúmulo, pelo kitsh, pelas questões sexuais, pela violência das imagens...
Aqui mais uma vez o leitor, para entender o texto de Márcia Barroca, precisa ter em seu repertório o conhecimento dos filmes deste diretor que vem há três décadas produzindo filmes com um estilo bastante marcante. Logo, virar Almodóvar não é o mesmo que virar Carlos Saura ou virar Buñuel, só para citarmos três cineastas espanhóis de grande importância.
Um texto, como este de Marcia, quase sempre é sobre outro texto, entendendo-se aqui a palavra texto em sentido bem amplo, o que faz com que a leitura seja também releitura.

Marcus Vinicius Quiroga

terça-feira, 2 de novembro de 2010

TRANSCODIFICAÇÃO



Hoje vamos aproveitar a deixa do último blog, quando apresentamos o texto de Arlete Nogueira da Cruz e vamos pôr na tela mais dois em que há referências a Van Gogh. Ou, como dizia João Cabral: “...De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro...
Fica a proposta de um exercício: a leitura dos dois poemas e o entendimento do porquê da presença do pintor holandês nos dois. De que forma os textos são poeticamente um reflexo de suas pinturas? Como ocorre a intertextualidade entre os poemas e os quadros? Seria, para usar uma palavrinha mais difícil, uma transcodificação?
E, por último, por que não fazer você um texto que aluda ao pintor? Ou, se quiser, a seu pintor predileto.

Marcus Vinicius Quiroga




GOTA MÁGICA


Caminho aberto, em trigo e girassóis,
sutil gota mágica se desprende
em louro momento de cor e tela
e em prisma de madrugada e flor.

Suarento lema na maré afaga
folhas em momento de outono,
mágica riqueza de Midas,
loura poesia na arte de Van Gogh.
Ramos de ouro em prumos,
em armas de sutil carisma,
contraste de seca e flor.

Tema que armadilha gestos
na temática do poeta-artista,
na magia do poderoso mago.

Alice Spíndola



IRREVERSÍVEL

desapareceu num quadro de Van Gogh
sem deixar vestígio

quem sabe o líquido que existia em sua taça?
talvez as palavras não tenham sido suficientemente
tácitas

seria capturado num leilão tardio?

ou sob a forma de um trigo teria amadurecido

a paisagem e o desvario?


Marcus Vinicius Quiroga








segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O REPERTÓRIO





VICENTE DOIDO

Antônia estava no Museu de Van Gogh, em Amsterdam, admirando o Trigal com corvos deste Vincent, quando se lembrou de repente de um homem que existiu no longínquo povoado de seu país. Cantanhede, do outro lado do Atlântico, onde ela nascera, também chamado Vicente.
Vicente era apelidado de Vicente Doido, porque tinha hábitos e temperamentos próprios e caminhava ensimesmado sobre os dormentes, entre os trilhos de uma estrada de ferro. Ninguém nunca explicou por que não morreu debaixo dos trens que por ali passavam, tal era o abismo em que vivia mergulhado.
Só agora, vendo os quadros de Van Gogh, Antônia se convencia de que Vicente Doido teria sido um pintor famoso se lhe tivessem dado estudo, telas, pincéis e tintas.
Vicente vivia com um pedaço de carvão desenhando nas paredes do lugar. Todos reclamavam, mas lá estava ele a pintar os campos e os bichos que lhe perturbavam a imaginação exacerbada, em desesperada sofreguidão. Antônia lembrava agora, lamentando uma espécie de perda irreparável.
Então, em Amsterdam, em lugar de Trigal com corvos de Van Gogh, surgiu um belo touro de Vicente Doido desenhado a carvão, numa velha parede de sua infância. Antônia pensou: “uma pena se alguém não tiver como eu, Vicente, esse teu touro na memória, porque aí ele desaparecerá comigo para sempre quando eu morrer. O touro, porque tu, Vicente, estará vivo” – foi o que Antônia garantiu, enquanto admirava de novo o Trigal com corvos, eterno, de Van Gogh.

Arlete Nogueira da Cruz


Lido o belo texto de Arlete, pensemos sobre a questão do repertório. O leitor que não conhecer a obra e a vida de Van Gogh fará uma compreensão bastante parcial. Melhor, não captará as intenções da autora, pois não entenderá a comparação. Logo, quando escrevemos, sabemos que o fazemos para o leitor que tiver em seu repertório todos os (ou boa parte dos) elementos que usamos em nossos textos.
Dito de outro modo, o texto é feito pelas diversas leituras a que ele se oferece e estas dependem do repertório, sempre bem variável, de quantos as façam. Um texto não tem um sentido único, fechado, por várias razões. Em primeiro lugar, pela possível polissemia de suas palavras. Mas, em segundo lugar e não menos importante, pela capacidade de compreensão de seus leitores, pois os sentidos só aparecem na relação entre os dois, textos e leitor.
O eterno Van Gogh, como a personagem Antônia diz, tem sua eternidade no repetitivo gesto de contemplação de seus admiradores. A cada olhar, ou a cada leitura, o quadro renasce e produz significa-dos. E como nosso repertório não é fixo, à medida que ele se amplia, nosso olhar e nossa leitura se modificam.
E assim, da noite para o dia, acontece de olharmos e “lermos” o Trigal com corvos, por exemplo, de forma inusitada, porque superpo-mos a esta tela, já nossa velha conhecida, significados novos e subjetivos. Porque um repertório é (ou é desejável que seja) algo sempre em movimento. E uma tela sombria pode se encher de luz.

Marcus Vinicius Quiroga