sábado, 6 de novembro de 2010

A FUSÃO LÍRICA



LEMBRANÇA DO RIO

Da janela da cozinha
Eu via
O rio
Ou era o rio que me espiava,
Espichando o dorso de lama,
Cobra
De couro liso.

Enquanto lavava louça,
O rio,
Escorregadio,
Levava nas águas sem espuma,
Os meus desejos,
Sentimentos
E desvios.

De vez em quando,
Desprendia-se da árvore
Um bugio,
O rio tremia,
A pele eriçada
Num calafrio.

Eu via
E pensava:
Sou moça,
Não vou morrer
Se me atiro
Nesse rio;
Não há dor,
Queimadura,
Lamento
Que ele não cure,
O seu balbucio
É paz e esquecimento.

Ó substância úmida!
Ó existência precária!
Meu corpo escoa
Como água
Como se fosse
Meu próprio rio

Raquel Naveira




A maioria dos poemas de nossa literatura pertence ao gênero lírico. Desta forma, à semelhança do senhor Jourdain, em O burguês fidalgo, de Molière, muitos de nós talvez façamos textos líricos, sem que o saibamos. Mas este não é o caso da professora Raquel Naveira, que em Lembrança do rio, oferece-nos um lirismo sem sentimentalismos, sem piequices e sem os clichês que se cristalizaram no gênero. Como há o predomínio de textos de temática amorosa, a ocorrência do lugar-comum é frequente, pois se trata de tema que leva muitas vezes o autor a pensar no destinatário de seu poema, e não no poema em si.
Aqui temos o eu poético defronte de um rio que, animizado já primeira estrofe, alterna a ação de olhar, como se fosse ele também o sujeito do discurso (“Eu via/ O rio/Ou era o rio que me espiava”). Depois os verbos paronomásicos lavar/levar igualam outra ação em que se faz presente o elemento água. Este contínuo movimento de identificação do eu poético com o seu objeto, o rio, atinge o momento máximo na símile da última estrofe (“Meu corpo escoa/Como água/Como se fosse/Meu próprio rio”).
Temos, então, um bom exemplo da fusão lírica: o termo comparativo como faz a ligação entre o eu e o rio, agora já um só ser, tanto que o corpo do eu “escoa”, atributo que seria próprio do rio.
Vários verbos de ação (olhar, espichar, levar, tremer e curar) descrevem o rio, correspondendo à expectativa que se tem de um rio, mas ele, ao mesmo tempo, é a inação, ou seja, “paz e esquecimento”. A subjetividade do eu faz com que seu objeto adquira significados outros, capaz até de levar (ou lavar?) coisas abstratas como sentimentos e desejos, afinal um rio é normalmente, como os homens, feito de desvios.


Marcus Vinicius Quiroga



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