segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O ELEMENTO DOIS






Saiu uma nota no jornal insinuando que o texto Metade seria plágio de Traduzir-se, fato de que discordamos. Os dois lidam com uma estrutura dual e palavras sinônimas, metade e parte, mas parecem ter temáticas e propósitos diferentes. Semelhanças deste tipo ocorrem com frequência, sem que um dos autores tenha lido o outro. E, neste caso, Ferreira Gullar e Oswaldo Montenegro são autores acima de qualquer suspeita, cujas obras são bem maiores do que um poema ou uma letra.
A nota serviu para mostrarmos os textos e chamarmos a atenção para a construção poética, que, afinal, é sempre o que nos interessa. A estrutura dual (repetimos) de Traduzir-se aparece em outros textos da obra de Gullar e em seu recente livro Em alguma parte alguma é uma técnica recorrente, que mereceu de nós um estudo, A poesia em toda parte de Em alguma parte alguma, texto extenso para a proposta de nosso blog, que pode ser lido na revista Plural, da Oficina Editores.
Na letra de Montenegro a estrutura feita de pares opositivos se encaminha até a última estrofe, e, no momento do clímax, a oposição se defaz e as duas metades agora se igualam, porque são o amor. A interrupção da oposição busca o inesperado, o efeito de surpresa, sugerindo, talvez que só sejamos inteiros no amor.
Já no texto de Gullar o impasse não se desfaz e a oposição requer uma tradução (ideia chave do poema) permanente. Sua pergunta final mostra que a dualidade humana ali não foi solucionada, logo cabe ao eu poético a “arte” (com suas conotações) de traduzir-se.
Propomos ao leitor que preste atenção ao uso constante da apresentação opositiva nos textos, como forma de valorizar um dos termos da oposição, o que normalmente ocorre no final. E, como exercício, faça também um texto em que haja pares que se contrariem como elemento estruturador de sua forma literária.


Marcus Vinicius Quiroga







METADE


Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo
seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Oswaldo Montenegro

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar

Nenhum comentário:

Postar um comentário