VICENTE DOIDO
Antônia estava no Museu de Van Gogh, em Amsterdam, admirando o Trigal com corvos deste Vincent, quando se lembrou de repente de um homem que existiu no longínquo povoado de seu país. Cantanhede, do outro lado do Atlântico, onde ela nascera, também chamado Vicente.
Vicente era apelidado de Vicente Doido, porque tinha hábitos e temperamentos próprios e caminhava ensimesmado sobre os dormentes, entre os trilhos de uma estrada de ferro. Ninguém nunca explicou por que não morreu debaixo dos trens que por ali passavam, tal era o abismo em que vivia mergulhado.
Só agora, vendo os quadros de Van Gogh, Antônia se convencia de que Vicente Doido teria sido um pintor famoso se lhe tivessem dado estudo, telas, pincéis e tintas.
Vicente vivia com um pedaço de carvão desenhando nas paredes do lugar. Todos reclamavam, mas lá estava ele a pintar os campos e os bichos que lhe perturbavam a imaginação exacerbada, em desesperada sofreguidão. Antônia lembrava agora, lamentando uma espécie de perda irreparável.
Então, em Amsterdam, em lugar de Trigal com corvos de Van Gogh, surgiu um belo touro de Vicente Doido desenhado a carvão, numa velha parede de sua infância. Antônia pensou: “uma pena se alguém não tiver como eu, Vicente, esse teu touro na memória, porque aí ele desaparecerá comigo para sempre quando eu morrer. O touro, porque tu, Vicente, estará vivo” – foi o que Antônia garantiu, enquanto admirava de novo o Trigal com corvos, eterno, de Van Gogh.
Arlete Nogueira da Cruz
Lido o belo texto de Arlete, pensemos sobre a questão do repertório. O leitor que não conhecer a obra e a vida de Van Gogh fará uma compreensão bastante parcial. Melhor, não captará as intenções da autora, pois não entenderá a comparação. Logo, quando escrevemos, sabemos que o fazemos para o leitor que tiver em seu repertório todos os (ou boa parte dos) elementos que usamos em nossos textos.
Dito de outro modo, o texto é feito pelas diversas leituras a que ele se oferece e estas dependem do repertório, sempre bem variável, de quantos as façam. Um texto não tem um sentido único, fechado, por várias razões. Em primeiro lugar, pela possível polissemia de suas palavras. Mas, em segundo lugar e não menos importante, pela capacidade de compreensão de seus leitores, pois os sentidos só aparecem na relação entre os dois, textos e leitor.
O eterno Van Gogh, como a personagem Antônia diz, tem sua eternidade no repetitivo gesto de contemplação de seus admiradores. A cada olhar, ou a cada leitura, o quadro renasce e produz significa-dos. E como nosso repertório não é fixo, à medida que ele se amplia, nosso olhar e nossa leitura se modificam.
E assim, da noite para o dia, acontece de olharmos e “lermos” o Trigal com corvos, por exemplo, de forma inusitada, porque superpo-mos a esta tela, já nossa velha conhecida, significados novos e subjetivos. Porque um repertório é (ou é desejável que seja) algo sempre em movimento. E uma tela sombria pode se encher de luz.
Marcus Vinicius Quiroga
Nenhum comentário:
Postar um comentário