sexta-feira, 12 de novembro de 2010

VIVIANES






Há anos um amigo me convidou para batizar a sua filha e, para minha surpresa, disse que eu poderia escolher o nome. Então me veio na hora Viviane. É claro que, em sendo eu Vinicius, um analista veria na escolha uma autoalusão camuflada, já um poeta uma aliteração. Esta é uma das muitas diferenças entre analistas e poetas
Mas é de outra Viviane que trato hoje, a Mosé. De seus múltiplos talentos, ficamos com a poesia. E temos aqui um exemplo feliz de alegoria, para estudarmos a área semântica determinada pela autora para fazer as comparações e, através de uma suposta receita, pensar sobre a conduta humana. A propósito, lembrei-me agora de que esta Viviane é poeta e analista, além de filósofa, atriz etc



RECEITA PRA LAVAR PALAVRA SUJA

Mergulhar a palavra suja em água sanitária,
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.
Existem outras e a palavra amor é uma delas
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
—que atende pelo nome de amargura—
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
Á noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

Viviane Mosé

Um comentário:

  1. Adoro a sua hora para poetizar no computador.
    Me faz sentir menos estranha.
    Beijos.

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